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Mensagens

A mostrar mensagens de julho, 2007

O Canavial e o Mar

O que o mar sim ensina ao canavial: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial sim ensina ao mar: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não ensina ao canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial não ensina ao mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. João Cabral de Melo Neto

Myanmar: Heartbeat of Gentle People

Manuel Librodo http://www.pbase.com/manny_librodo

O Mar e o Canavial

O que o mar sim aprende do canavial: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não aprende do canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial sim aprende do mar: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minuciosio, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial não aprende do mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. João Cabral de Melo Neto

Aqui nesta praia | 35

Sur la plage, Le Treport,  Albert Aublet

Impetuoso, o teu corpo

Impetuoso, o teu corpo é como um rio onde o meu se perde. Se escuto, só oiço o teu rumor. De mim, nem o sinal mais breve. Imagem dos gestos que tracei, irrompe puro e completo. Por isso, rio foi o nome que lhe dei. E nele o céu fica mais perto. Eugénio de Andrade

Há cidades cor de pérola

Há cidades cor de pérola onde as mulheres existem velozmente. Onde às vezes param, e são morosas por dentro. Há cidades absolutas, trabalhadas interiormente pelo pensamento das mulheres. Lugares límpidos e depois nocturnos, vistos ao alto como um fogo antigo, ou como um fogo juvenil. Vistos fixamente abaixados nas águas celestes. Há lugares de um esplendor virgem, com mulheres puras cujas mãos estremecem. Mulheres que imaginam num supremo silêncio, elevando-se sobre as pancadas da minha arte interior. Há cidades esquecidas pelas semanas fora. Emoções onde vivo sem orelhas nem dedos. Onde consumo uma amizade bárbara. Um amor levitante. Zona que se refere aos meus dons desconhecidos. Há fervorosas e leves cidades sob os arcos pensadores. Para que algumas mulheres sejam cândidas. Para que alguém bata em mim no alto da noite e me diga o terror de semanas desaparecidas. Eu durmo no ar dessas cidades femininas cujos espinhos e sangues me inspiram o fundo da vida. Nelas queimo o mês que me pe

Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras Em que ri e cantei, em que era querida, Parece-me que foi noutras esferas, Parece-me que foi numa outra vida... E a minha triste boca dolorida, Que dantes tinha o rir das primaveras, Esbate as linhas graves e severas E cai num abandono de esquecida! E fico, pensativa, olhando o vago... Toma a brandura plácida dum lago O meu rosto de monja de marfim... E as lágrimas que choro, branca e calma, Ninguém as vê brotar dentro da alma! Ninguém as vê cair dentro de mim! Florbela Espanca

Ler contra o silêncio | 11

CMS Reading by Gaslight William Stott of Oldham

Poema ausência

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados Para que eu possa levar uma gota de orvalho desta terra amaldiçoada Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos Mas

Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes. Gastámos tudo menos o silêncio. Gastámos os olhos com o sal das lágrimas, gastámos as mãos à força de as apertarmos, gastámos o relógio e as pedras das esquinas em esperas inúteis. Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada. Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro; era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar. Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes. E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis. Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário, era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes. Hoje são apenas os meus olhos. É pouco mas é verdade, uns olhos como todos os outros. Já gastámos as palavras. Quando agora digo: meu amor, já não se passa absolutamente nada. E no entanto, antes das palavras gastas, tenho a certeza de que to

Eleanor

Harry Callahan

... o fim do caminho

António Lança www.olhares.com

Meio da vida

Porque as manhãs são rápidas e o seu sol quebrado Porque o meio-dia Em seu despido fulgor rodeia a terra A casa compõe uma por uma as suas sombras A casa prepara a tarde Frutos e canções se multiplicam Nua e aguda A doçura da vida. Sophia de Mello Breyner Andresen

Domingo no mundo | 15

News David Sousa www.olhares.com

Para tornar legível a emoção

Agora, que uma luz difusa me fascina retenho a idade em que não ousava fazer do coração um lugar de conflito. Escoa-se, de meus lábios, sem aviso prévio, um excessivo odor a maresia, como se o verão atasse em meu pescoço a sombra das dunas e todos os ventos afugentassem a inevitabilidade da morte. É de musgo, a vertigem onde demoro as mãos, para tornar legível a emoção. Graça Pires Ortografia do olhar

É sempre em julho

Foi em julho, que bandos e bandos de gaivotas, planaram sobre o olhar de tua mãe, para que ao nascer, herdasses a secreta violência das marés. Agora, é sempre em julho que, dos teus olhos, se avista um oceano inteiro, enquanto um navio te cresce, perfeito, sobre os lábios, soletrando íntimas paragens. Graça Pires Ortografia do olhar ...para ti R...

Em noites de verão

Em noites de verão, povoadas de sombras, não ouso confessar a solidão. O tempo altera na voz o destino da luz. Os sons familiares tornam-se sombrios. O luar, humidamente cheio, encobre a raiva, na boca agitada do poema. A imagem invertida da lua, a ferir as mãos e a desmesurar as palavras arrasta-me o pensamento até à perturbação. Graça Pires poema retirado do Insónia e de um livro que não conheço mas com um título genial " Não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos" .

Ler contra o silêncio | 10

Sunlight and Shadow Winslow Homer

as glicínias

nos alpendres de junho perpassa um halo azul a desprender-se em cheiros que procuram a terra devagar numa gaze de luminescências e de abelhas. é quando cresce a música na intimidade das glicínias e se despenha o seu perfume nas sombras mais intensas, como se falássemos das águas ou da matéria da melancolia nesta luz feita de sussurros do jardim e o mundo começasse pelas narinas e o nó da vida se prendesse ao voo de um aroma, à sua consistência doce, arejada entre o chão e as núvens. desce pelos vãos da solidão macia, lento como um óleo a alastrar na pele do tempo, o enredamento grave das glicínias, para um torpor, para um renascimento, para uma canção breve das delícias, um recordar de mágoas, um cacho de silêncios, um respirar mais fundo, um habitar. Vasco Graça Moura (para josé domingos da cruz santos)

Running river

Wang Yi Guang Estou de partida para um fim de semana alargado. Regresso durante a próxima semana...fiquem bem!

Ler contra o silêncio | 9

Rêves Vittorio Matteo Corcos

Prece

Que nenhuma estrela queime o teu perfil Que nenhum deus se lembre do teu nome Que nem o vento passe onde tu passas. Para ti criarei um dia puro Livre como o vento e repetido Como o florir das ondas ordenadas. Sophia de Mello Breyner Andresen

No tempo divido

E agora ó Deuses que vos direi de mim? Tardes inertes morrem no jardim. Esqueci-me de vós e sem memória Caminho nos caminhos onde o tempo como um monstro a si próprio se devora. Sophia de Mello Breyner Andresen

Puro espírito

Puro espírito do êxtase e do vento Que no silêncio da planície danças Eu não quero tocar teu corpo de água Nem quero possuir-te nem cantar-te Pesa-me já demais a minha mágoa Sem que seja preciso procurar-te. Sophia de Mello Breyner Andresen

Aqui nesta praia | 34

Sand Beach - Schooner Head, Maine,  John Singer Sargent

sinuoso andar

deixo correr meus dedos sobre o ábaco das tuas costelas em sinuoso andar meneios de chalupa que deriva buscando ancoradouros, reentrâncias como um visitante na ancestral Hiperbórea a contemplar suas cúpulas e minaretes. receio repousar perdendo a hora a contagem das borlas inexatas que te dividem os flancos o circular das conchas em sifão se quando envergas arrebatadora conduzes dedos, palmas, unhas feito côdeas a minha mão inteira contra a tua. meu sinuoso andar vagueia então se destribando não mais cidade de luzes eternas a felicidade adormeceu enfim Carlos Henrique Leiros do blog Almofariz

As últimas 5 leituras

Respondo ao desafio lançado pelo Rogério Matos do Insustentável , deixando aqui as minhas últimas 5 leituras: > Frankie e o Casamento de Carson McCullers (em fase de leitura) > Claro Enigma de Carlos Drummond de Andrade > A Educação pela Pedra de João Cabral de Melo Neto > A Formosa Pintura do Mundo de Frederico Lourenço > Amar não Acaba de Frederico Lourenço Passo o desafio ao Henrique Fialho do Insónia , à Cristina Nobre Soares do O que é feito de si Mrs Pankhurst? , ao Marx do Voando sobre um ninho de dúvidas , à Marta R do Astro que Flameja , e ao ch do Almofariz .

Eco

Vem até mim no silêncio da noite, Vem no silêncio sussurrante de um sonho, Vem com faces cheias e doces e olhos brilhantes Como a luz do sol num regato, Vem de volta em lágrimas Oh! memória, esperança, amor de anos findos. Oh! sonho doce, tão doce, demasiado amargo e doce, Cujo acordar deveria ter lugar no Paraíso, Onde as almas transbordantes de amor vivem e se encontram Onde olhos sedentos anelantes Observam a lenta porta Que abrindo-se, deixando entrar, não mais deixa sair. Mas vem até mim em sonhos, para que possa de novo viver A minha vida verdadeira, embora fria na morte Vem de volta para mim em sonhos, para que possa dar Pulsar por pulsar, alento por alento: Fala baixinho, inclina-te mais Como há tanto tempo, meu amor, há quanto tempo. Christina Georgina Rossetti tradução de Margarida Vale de Gato

Ler contra o silêncio | 8

Girl in a Hammock Winslow Homer

The day dream

Dante Gabriel Rossetti

Num qualquer sítio

Num qualquer sítio decerto deve haver A face nunca vista, a voz nunca ouvida O coração que ainda nunca, nunca ainda, pobre de mim! Respondeu à minha chamada. Num qualquer sítio, talvez perto ou longe, Para além da terra e do mar, bem longe da vista Para além da lua errante, para lá da estrela Que a segue noite após noite. Num qualquer sítio, talvez longe ou perto, Com apenas um muro, uma sebe a escondê-lo, Ou apenas as últimas folhas do ano a morrer Caídas sobre um relvado enverdecido. Christina Georgina Rossetti tradução de Helena Barbas

The tree of forgiveness

Edward Burne-Jones

Sem Fala

Por muitas milhas sobre terra e mar Sem o chamar, o meu amor regressou a mim Não me recordo das palavras que ele disse Apenas das árvores a gemer sobre nós. E ele chegou pronto para me tomar e levar A cruz que há tantos anos eu carregava Mas as palavras vieram uma a uma devagar De lábios gelados, selados e mudos. Como soaram minhas palavras quietas e lentas Ao coração grande e forte que tanto me amou, Que veio para me salvar da dor e do mal E para me confortar com o seu amor tão forte? Senti o vento a chicotear gelado e frio E vapores erguerem-se do húmus arruivado; Senti o feitiço que me suspendia a respiração A sujeitar-me a uma morte na vida. Elizabeth Eleanor Siddall tradução de Helena Barbas

À luz da lua | 20

Beyond the Mountains Han Wu Shen

Não muita vez

Não muita vez nos vemos, mas, se poucos amigos há para falar dos quais me sirvo de relâmpagos, de todos é ele o que melhor vai com a minha fome. Os dedos com que me tocou persistem sob a pele, onde a memória os move. Tacteiam, impolutos. Tantas vezes o suor os traz consigo da memória, que não tenho na pele poro através do qual eles não procurem sair quando transpiro. A pele é o espelho da memória. Luís Miguel Nava