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Mensagens

A mostrar mensagens de 2006

A todos os que por aqui passarem nos próximos dias...

The Virgin and Child with Four Saints Francesco Bonsignori Esta época enche-se inevitavelmente de memórias, ecos que nos chegam da nossa infância... Talvez por isso o Natal nos faça sentir pequenos, de inúmeras formas e sentidos. Deixo-vos aqui um poema que faz parte dessa minha memória e que ainda hoje, felizmente, oiço pela voz do meu pai. E assim neste embalo desejo, que cada uma das nossas memórias nos aproxime mais uns dos outros, e que este calor nos faça companhia durante o novo ano que chega. Hymno de Amor Andava um dia Em pequenino Nos arredores De Nazareth, Em companhia De San José, O bom-Jesus, O Deus-Menino. Eis senão quando Vê num silvado Andar piando Arrepiado E esvoaçando Um rouxinol, Que uma serpente De olhar de luz Resplandecente Como a do sol, E penetrante Como diamante, Tinha attrahido, Tinha encantado. Jesus, doído Do desgraçado Do passarinho, Sae do caminho, Corre apressado, Quebra o encanto, Foge a serpente, E de repente O pobrezinho, Salvo e contente, Rompe n'

Madonna and flowers

Natal africano

Não há pinheiros nem há neve, Nada do que é convencional, Nada daquilo que se escreve Ou que se diz... Mas é Natal. Que ar abafado! A chuva banha A terra, morna e vertical. Plantas da flora mais estranha, Aves da fauna tropical. Nem luz, nem cores, nem lembranças Da hora única e imortal. Somente o riso das crianças Que em toda a parte é sempre igual. Não há pastores nem ovelhas, Nada do que é tradicional. As orações, porém, são velhas E a noite é Noite de Natal. João Cabral do Nascimento

Madonna and Child

Olga Polunin Carlo Maratta

Falavam-me de amor

Quando um ramo de doze badaladas se espalhava nos móveis e tu vinhas solstício de mel pelas escadas de um sentimento com nozes e com pinhas, menino eras de lenha e crepitavas porque do fogo o nome antigo tinhas e em sua eternidade colocavas o que a infância pedia às andorinhas. Depois nas folhas secas te envolvias de trezentos e muitos lerdos dias e eras um sol na sombra flagelado. O fel que por nós bebes te liberta e no manso natal que te conserta só tu ficaste a ti acostumado. Natália Correia

The Newborn

Georges de la Tour

Natal à beira-rio

É o braço do abeto a bater na vidraça? E o ponteiro pequeno a caminho da meta! Cala-te, vento velho! É o Natal que passa, A trazer-me da água a infância ressurrecta. Da casa onde nasci via-se perto o rio. Tão novos os meus Pais, tão novos no passado! E o Menino nascia a bordo de um navio Que ficava, no cais, à noite iluminado... Ó noite de Natal, que travo a maresia! Depois fui não sei quem que se perdeu na terra. E quanto mais na terra a terra me envolvia E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra. Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me À beira desse cais onde Jesus nascia... Serei dos que afinal, errando em terra firme, Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia? David Mourão-Ferreira

Meu coração tardou

Meu coração tardou. Meu coração Talvez se houvesse amor nunca tardasse; Mas, visto que, se o houve, houve em vão, Tanto faz que o amor houvesse ou não. Tardou. Antes, de inútil, acabasse. Meu coração postiço e contrafeito Finge-se meu. Se o amor o houvesse tido, Talvez, num rasgo natural de eleito, Seu próprio ser do nada houvesse feito, E a sua própria essência conseguido. Mas não. Nunca nem eu nem coração Fomos mais que um vestígio de passagem Entre um anseio vão e um sonho vão. Parceiros em prestidigitação, Caímos ambos pelo alçapão. Foi esta a nossa vida e a nossa viagem. Fernando Pessoa

À luz da lua | 10

Mother and Child John Macdonald

Y este corazón

Mirta Kupferminc

Passemos, tu e eu, devagarinho

Passemos, tu e eu, devagarinho, Sem ruído, sem quase movimento, Tão mansos que a poeira do caminho A pisemos sem dor e sem tormento. Que os nossos corações, num torvelinho De folhas arrastadas pelo vento, Saibam beber o precioso vinho, A rara embriaguez deste momento. E se a tarde vier, deixá-la vir E se a noite quiser, pode cobrir Triunfalmente o céu de nuvens calmas De costas para o Sol, então veremos Fundir-se as duas sombras que tivemos Numa só sombra, como as nossas almas. Reinaldo Ferreira

Pequena litania para um amor familiar

sê devastador e violento como a tempestade ao abrir as gavetas, ao depor sobre a mesa nenhuma razão que outros conheçam. alimenta-te de mim e de ti, guarda as fotografias em paredes brancas onde nenhuma ave se demore, abre-me as feridas, as mais recentes e as antigas. sê brando e lento como as manhãs de dezembro ao desfazerem-se em neve, esquece os recados, os pequenos delitos escondidos em segredo. os telhados abrigam-nos da maledicência, do azar, daquilo que o tempo gasta em passar sobre nós. leva-me assim, como um acidente entre os dedos. sê luminoso e intenso, ó meu amor, retrato escondido, colecciona os declives, ensina-me essa geografia, sê inocente e puro, mesmo que a noite interrompa a vida e a nossa pele estremeça. deixa que bebamos apenas se o prazer magoar onde nasce a sede, fala-me de mim e de ti, se nos sentarmos nas dunas. Francisco José Viegas

Wang Yi Dong

Soneto da madrugada

Pensar que já vivi à sombra escura Desse ideal de dor, triste ideal Que acima das paixões do bem e do mal Colocava a paixão da criatura! Pensar que essa paixão, flor de amargura Foi uma desventura sem igual Uma incapacidade de ternura Nunca simples e nunca natural! Pensar que a vida se houve de tal sorte Com tal zelo e tão íntimo sentido Que em mim a vida renasceu da morte! Hoje me libertei, povo oprimido E por ti viverei meu ódio forte Nesse misterioso amor perdido. Vinícius de Moraes

The Pink Orchard

Vincent Van Gogh

O sol nas noites e o luar nos dias

De amor nada mais resta que um Outubro e quanto mais amada mais desisto: quanto mais tu me despes mais me cubro e quanto mais me escondo mais me avisto. E sei que mais te enleio e te deslumbro porque se mais me ofusco mais existo. Por dentro me ilumino, sol oculto, por fora te ajoelho, corpo místico. Não me acordes. Estou morta na quermesse dos teus beijos. Etérea, a minha espécie nem teus zelos amantes a demovem. Mas quanto mais em nuvem me desfaço mais de terra e de fogo é o abraço com que na carne queres reter-me jovem. Natália Correia

The Pink Peach Tree

Vincent Van Gogh

Sete luas

Há noites que são feitas dos meus braços e um silêncio comum às violetas e há sete luas que são sete traços de sete noites que nunca foram feitas Há noites que levamos à cintura como um cinto de grandes borboletas. E um risco a sangue na nossa carne escura duma espada à bainha de um cometa. Há noites que nos deixam para trás enrolados no nosso desencanto e cisnes brancos que só são iguais à mais longínqua onda de seu canto. Há noites que nos levam para onde o fantasma de nós fica mais perto: e é sempre a nossa voz que nos responde e só o nosso nome estava certo. Natália Correia

The White Orchard

Vincent Van Gogh

Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse

Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse ou se ao menos me desses as mãos como quem beija e não partisses, assim, empurrando o vento com o coração aflito, sufocado de segredos; se ao menos percebesses que eram nossos todos os bancos de todos os jardins; se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo que ambos empunhamos na cidade clandestina Quando as manhãs cheiravam a óleo e a flores e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo; se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos para guardar o teu corpo; se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos onde o teu rosto se esconde no meu rosto e a minha boca lembra a tua despedida, talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer essa cor perdida nos teus olhos. Joaquim Pessoa

Almond Tree in Blossom

Vincent Van Gogh

Almond Blossom

Vincent Van Gogh

Paisagem

Passavam pelo ar aves repentinas, O cheiro da terra era fundo e amargo, E ao longe as cavalgadas do mar largo Sacudiam na areia as suas crinas. Era o céu azul, o campo verde, a terra escura, Era a carne das árvores elástica e dura, Eram as gotas de sangue da resina E as folhas em que a luz se descombina. Eram os pinheirais onde o céu poisa, Era o peso e era a cor de cada coisa, A sua quietude, secretamente viva, E a sua exaltação afirmativa. Era a verdade e a força do mar largo, Cuja voz, quando se quebra, sobe, Era o regresso sem fim e a claridade Das praias onde a direito o vento corre. Sophia de Mello Breyner Andresen

Maresias #186

Nanã Sousa Dias

Bastava-nos amar. E não bastava

Bastava-nos amar. E não bastava o mar. E o corpo? O corpo que se enleia? O vento como um barco: a navegar. Pelo mar. Por um rio ou uma veia. Bastava-nos ficar. E não bastava o mar a querer doer em cada ideia. Já não bastava olhar. Urgente: amar. E ficar. E fazermos uma teia. Respirar. Respirar. Até que o mar pudesse ser amor em maré cheia. E bastava. Bastava respirar a tua pele molhada de sereia. Bastava, sim, encher o peito de ar. Fazer amor contigo sobre a areia. Joaquim Pessoa

Outono

Uma lâmina de ar Atravessando as portas. Um arco, Uma flecha cravada no outono. E a canção Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas. E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio. É outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza Quando saio para a rua, molhado, como um pássaro. Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito. Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede Cumprimenta o sol. Procura-se viver. Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas. Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se Como se, de repente, não houvesse mais nada senão A imperiosa ordem de (se) amarem. Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras. Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos. Não há um nome para a tua ausência. Há um muro Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho Que a minha boca recusa. É outono. A pouco a pouco despem-s

Festa da Música

O hálito azul da tarde associa-se ao luto, sentido, pela partida da Festa da Música. Ver insustentável .

Nos olhos de Isa

Nos olhos de Isa a chuva grita e a noite Acende fogueiras. Os meus olhos param. Nos olhos de Isa. Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada E o vento acorda para ajudar os pássaros a voar E as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza verde. Nos olhos de Isa. Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas, Num clarão de silêncio, em estilhaços de rosas, pétalas de sombra. Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel Onde as abelhas constroem a tarde Desesperadamente. Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão. Joaquim Pessoa

À luz da lua | 9

Mother about to wash her sleepy child Mary Cassat

Celebrar

Haverá mesmo noite para celebrar? Como se esta noite fosse uma seringa à cabeceira, está na estante um monte de livros e só um tem um lápis dentro; onde está o fogo para levar para fora, às luzes onde qualquer rua derrota e apaga os seus candeeiros? de noite no quarto, e com pena de não saber fumar, fica esta noite estúpida dentro da cabeça, para fazeres dentro o que bem entendes como se fosse um papel para escrever, e chegassem com força os ventos às janelas, como um tiro. é tarde, tanto faz estarem as mãos nos bolsos como não, tanto faz passar alguém como não passar, e olhar. Rogério da Cruz

Aqui nesta praia | 25

American Women at the Beach,  Vladimir Lebedev

Late in the Fall

Victor Wang

nalgum lugar em que eu nunca estive

nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio: no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram, ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre (tocando sutilmente,misteriosamente) a sua primeira rosa ou se quiseres me ver fechado, eu e minha vida nos fecharemos belamente, de repente, assim como o coração desta flor imagina a neve cuidadosamente descendo em toda a parte; nada que eu possa perceber neste universo iguala o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura compele-me com a cor de seus continentes, restituindo a morte e o sempre cada vez que respira (não sei dizer o que há em ti que fecha e abre; só uma parte de mim compreende que a voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas) ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas E. E. Cummings

Para ti Ana, com ternura!

As Grutas O esplendor poisava solene sobre o mar. E - entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido - quase me cega a perfeição como um sol olhando de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e rápido dos peixes. Porém a beleza não é solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. (...) Sophia de Mello Breyner Andresen

Forgotten Memory

Victor Wang

Hope

Victor Wang

Les amoureux sous la lune

Marc Chagall

Em meu ofício ou arte taciturna

Em meu ofício ou arte taciturna Exercido na noite silenciosa Quando somente a lua se enfurece E os amantes jazem no leito Com todas as suas mágoas nos braços, Trabalho junto à luz que canta Não por glória ou pão Nem por pompa ou tráfico de encantos Nos palcos de marfim Mas pelo mínimo salário De seu mais secreto coração. Escrevo estas páginas de espuma Não para o homem orgulhoso Que se afasta da lua enfurecida Nem para os mortos de alta estirpe Com seus salmos e rouxinóis, Mas para os amantes, seus braços Que enlaçam as dores dos séculos, Que não me pagam nem me elogiam E ignoram meu ofício ou minha arte. Dylan Thomas

À luz da lua | 8

Madre Lactante Nestor Lopez

A imprevista graça de um soluço infante

Alguma dor cortante, violina, um gume, acorda uma saudade do que nunca foi, inventa um tempo afável, o da distância aberta no olhar da tarde que se debruça sobre o meu deleite, sobre a surpresa de a achar suspensa no limiar daquilo que previa, e assim já a sabia, sem saber de ti. Saudade de algum tempo já por certo inscrito na memória dos génios, pois de quem mais, da luz? Tal luz de maio velho que vem do mar para arder-te o rosto e a luz e a cor e dar-me a ver, perplexo, no instante de um relance, que era preciso ter chegado aqui para entender as devoções remotas, o brilho inscrito na exaustão dos dias que agora enfim, no espelho do teu porte, revelam os segredos para que me votavam, porque era de ti mesma que falavam e me induziam a aguardar-te intacto? Há quanto tempo é que afinal me habitas, vigias a intenção de imagens que entreguei, esquivas leituras que retive em sons para enfeitar o céu de tanta gente? É pois desse fervor, que era já teu (e algum lugar em mim já sabia) e me ate

À luz da lua | 7

Mother and Child Pablo Picasso

Dia Nacional do Mar

Hugo Amador Nanã Sousa Dias Zé Pedro Alexandre Costa Kalila Pinto Jomar www.olhares.com

Procuro o lento cimo da transformação

Procuro o lento cimo da transformação Um som intenso. O vento na árvore fechada A árvore parada que não vem ao meu encontro. Chamo-a com assobios, convoco os pássaros E amo a lenta floração dos bandos. Procuro o cimo de um voo, um planalto Muito extenso. E amo tanto A árvore que abre a flor em silêncio. Daniel Faria

Nguyen Minh Phuoc

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos

Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos Porque tinha uma mulher no pensamento Sei que os lavava como se os contasse Sei que os enxugava com a luz da mulher Com os seus olhos muito claros voltados para o centro Do amor, na operação poderosa Do amor Sei que cortava os cabelos para procurá-la Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava O cabelo no seu sangue Na água corrente Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir E a mulher cantava para o homem respirar Daniel Faria

Um coração de sangue

Um coração de sangue Um coração de xisto e aço Um coração angular e redondo Como a pedra que te abre Do interior do chão Um coração solar De granito De carne Curado da noite de nascença Um coração de homem Um coração de homem vivo Um coração de criança ao colo Interior – Mais interior do que o sangue no coração que me darás - Peço um coração Nuclear Daniel Faria

Make a wish

Tran Quoc Vinh

Se eu nunca disse que os teus dentes

Se eu nunca disse que os teus dentes São pérolas, É porque são dentes. Se eu nunca disse que os teus lábios São corais, É porque são lábios. Se eu nunca disse que os teus olhos São d'ónix, ou esmeralda, ou safira, É porque são olhos. Pérolas e ónix e corais são coisas, E coisas não sublimam coisas. Eu, se algum dia com lugares-comuns Houvesse de louvar-te, Decerto buscava na poesia, Na paisagem, na música, Imagens transcendentes Dos olhos e dos lábios e dos dentes. Mas crê, sinceramente crê, Que todas as metáforas são pouco Para dizer o que eu vejo. E vejo olhos, lábios, dentes. Reinaldo Ferreira

Desde quando alguma vez anoiteceu

Desde quando alguma vez anoiteceu E à angústia de que a terra se cobriu Só pasmo nas esferas respondeu; Desde quando alguma flor emurcheceu E a criança que válida se ria De repente calada apodreceu; Desde quando a algum estio sucedeu Um outro outono e a árvore se despiu E a primeira cabeça encaneceu; Desde quando alguma coisa que nasceu Sem que o pedisse, sem remédio se degrada E acaba, sob a terra que a comeu, Dispersa entre os átomos dispersos, Se acumula a tristeza deste dia E a razão destes versos. Reinaldo Ferreira

Aqui nesta praia | 24

Coast of Brittany (Alone with the Tide),  James McNeill Whistler

Posposição

Escrevo sentado sob a fraca luz que do alto desce. Tempo houve, outrora, em que as palavras, vertiginosa enxurrada, me acudiam desenvoltas à memória. Escrevo sobre a dura pedra do tempo mas distintos, mas acidulados sinais. Sobram-me exíguos e difíceis companheiros: a roxa luz do ocaso, meia dúzia de livros de alguma poesia árdua e monótona, um ou outro filósofo de guardado renome, a música sempre redentora, silêncio, a noite e mais silêncio. Em cada lugar devoluto um rosto ausente, um olhar velado confluindo sobre a mesma paisagem de sol e agitada sombra. Por ela correram soltos ásperos ventos e o desassossego de múltiplos destemperos, de todo impotentes para de todo a desfigurarem, não fora a mudável natureza dos homens. A luz é fraca, apenas a pressinto na metamorfose operada sobre os objectos que me rodeiam próximo. Ponho sal nas feridas, mal ardem em mim o Aleph imerso em sangue, a imagem do jovem adormecido no linho de Alexandria, a lembrança de ouros corpos que ao meu emprestara

Domingo no mundo | 10

Smiley Manuel Librodo www.pbase.com/manny_librodo

Bui Huy Quang

O poeta pede ao amor que lhe escreva

Amor de minhas entranhas, morte viva, em vão espero tua palavra escrita e penso, com a flor que se murcha, que se vivo sem mim quero perder-te. O ar é imortal. A pedra inerte nem conhece a sombra nem a evita. Coração interior não necessita o mel gelado que a lua verte. Porém eu te sofri. Rasguei-me as veias, tigre e pomba, sobre tua cintura em duelo de kordiscos e açucenas. Enche, pois, de palavras minha loucura ou deixa-me viver em minha serena noite da alma para sempre escura. Federico Garcia Lorca

Fragmentos

Muros castos e tristes Cativos de si mesmos Como criaturas que envelhecem Sem conhecer a boca De homens e mulheres. Muros Escuros, tímidos: Escorpiões de seda No acanhado da pedra. Há alturas soberbas Danosas, se tocadas. Como a tua própria boca, amor, Quando me toca... Hilda Hilst

Bui Huu Hung

As três experiências

Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. "O amar os outros" é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida . Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca. E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei

À luz da lua | 6

Hope II Gustave Klimt

O amor antigo

O amor antigo vive de si mesmo, não de cultivo alheio ou de presença. Nada exige nem pede. Nada espera, mas do destino vão nega a sentença. O amor antigo tem raízes fundas, feitas de sofrimento e de beleza. Por aquelas mergulha no infinito, e por estas suplanta a natureza. Se em toda parte o tempo desmorona aquilo que foi grande e deslumbrante, o antigo amor, porém, nunca fenece e a cada dia surge mais amante. Mais ardente, mais pobre de esperança. Mais triste? Não. Ele venceu a dor, e resplandece no seu canto obscuro, tanto mais velho quanto mais amor. Carlos Drummond de Andrade

Para ti querida amiga, neste dia especial

Felicidade Pela flor pelo vento pelo fogo Peça estrela da noite tão límpida e serena Pelo nácar do tempo pelo cipreste agudo Pelo amor sem ironia - por tudo Que atentamente esperamos Reconheci tua presença incerta Tua presença fantástica e liberta. Sophia de Mello Breyner Andresen Feliz Aniversário, Célia!

Domingo no mundo | 9

Smile Manuel Librodo www.pbase.com/manny_librodo

navegava-se...

navegava-se na arrogância das diferenças pela emaranhada teia de ruelas que constituía o centro da pequena cidade quase flutuante. misturavam-se os cheiros das especiarias com o hálito morno dos detritos. fervilhava a vida nos contornos das faces opacas e nas paredes roídas pelo tempo. tudo se movia convulsionando as veias deste pequeno corpo, largos e esquinas de tendas de "min", pato assado, frutos e vestuário. macau, 10 horas de uma manhã húmida de um julho espesso. caíu a noite absorvendo o dia. o sono emergia das janelas veladas. no asfalto vivia-se ainda o chiar dos pneus e sob as árvores da praia grande mantinha-se a troca amorosa das carícias, restos das escassas horas do trabalho imposto. o tufão passou ao largo, somente as águas castanhas do delta do rio das pérolas se mostraram impacientes, ondulando em pequenas cristas, balançando as panelas de caldo suspensas nos juncos ancorados. tudo se passa em termos inconsequentes, sem margens. o lodo e a muralha habitam a n

Aqui nesta praia | 23

Vent et Soleil,  Juarez Machado

O meu olhar é nítido como um girassol

O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, Reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo... Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender... O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... Eu não tenho filosofia; tenho sentidos... Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso Porque quem ama nunca sabe o que ama Nem sabe por que ama, nem o que é amar... Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar... Alberto Caeiro

Nghiem Xuan Hung