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Mensagens

A mostrar mensagens de maio, 2007

Os nascimentos de Vénus

Alexandre Cabanel Robert Fowler Sandro Botticelli Eugène-Emmanuel Amaury-Duval William-Adolphe Bouguereau

Vénus ao espelho

se a vénus ao espelho fosse uma oliveira a arder por dentro com sua chama de óleo doce e tudo em brasa desde o centro, se o seu espelho acaso fosse embaciado pelo alento que algum cúpido em voo trouxe entre desejo e atrevimento, se o ar no quarto depois fosse feito luz táctil do aposento e se entranhasse a tomar posse da nudez rósea no cinzento, e se velásquez então fosse pintar-lhe o ensimesmamento eu te diria: misturou-se ao próprio instinto o pensamento. Vasco Graça Moura Diego Velázquez Vejo as duas vidas que tu olhas; e das duas não sei qual escolher. Tiro-te do espelho; e à minha frente és o reflexo que imagino, num pedaço de realidade. Mas se tento tocar-te, é o vidro que me impede de passar para onde estás, e de onde me chamas, num eco de desejo. Pudesse eu partir o espelho, e ver em cada estilhaço os fragmentos de vida em que nos encontrámos! Ou colar ao vidro a minha boca, e encontrar húmidos os teus lábios! Porém, nada desvia a tua atenção; e no rosto que olhas vês o rosto q

The tenderness

Sára Saudková

Fraga e sombra

A sombra azul da tarde nos confrange. Baixa, severa, a luz crepuscular. Um sino toca, e não saber quem tange é como se este som nascesse do ar. Música breve, noite longa. O alfanje que sono e sonho ceifa devagar mal se desenha, fino, ante a falange das nuvens esquecidas de passar. Os dois apenas, entre céu e terra, sentimos o espetáculo do mundo, feito de mar ausente e abstrata serra. E calcamos em nós, sob o profundo instinto de existir, outra mais pura vontade de anular a criatura. Carlos Drummond de Andrade

A tela contemplada

Pintor da soledade nos vestíbulos de mármore e losango, onde as colunas se deploram silentes, sem que as pombas venham trazer um pouco do seu ruflo; traça das finas torres consumidas no vazio mais branco e na insolvência de arquiteturas não arquitetadas, porque a plástica é vã, se não comove, ó criador de mitos que sufocam, desperdiçando a terra, e já recuam para a noite, e no charco se constelam, por teus condutos flui um sangue vago, e nas tuas pupilas, sob o tédio, é a vida um suspiro sem paixão. Carlos Drummond de Andrade

L´Amour et Psyche

William-Adolphe Bouguereau

Tentei fugir da mancha mais escura

Tentei fugir da mancha mais escura que existe no teu corpo, e desisti. Era pior que a morte o que antevi: era a dor de ficar sem sepultura. Bebi entre os teus flancos a loucura de não poder viver longe de ti: és a sombra da casa onde nasci, és a noite que à noite me procura. Só por dentro de ti há corredores e em quartos interiores o cheiro a fruta que veste de frescura a escuridão... Só por dentro de ti rebentam flores. Só por dentro de ti a noite escuta o que me sai, sem voz, do coração. David Mourão-Ferreira

Ilha

Deitada és uma ilha E raramente surgem ilhas no mar tão alongadas com tão prometedoras enseadas um só bosque no meio florescente promontórios a pique e de repente na luz de duas gémeas madrugadas o fulgor das colinas acordadas o pasmo da planície adolescente Deitada és uma ilha Que percorro descobrindo-lhe as zonas mais sombrias Mas nem sabes se grito por socorro ou se te mostro só que me inebrias Amiga amor amante amada eu morro da vida que me dás todos os dias David Mourão-Ferreira

Ler contra o silêncio | 3

La Lecture abandonnée Félix Valloton

Tortura

Tirar dentro do peito a Emoção, A lúcida verdade, o Sentimento! -- E ser, depois de vir do coração, Um punhado de cinza esparso ao vento!... Sonhar um verso de alto pensamento, E puro como um ritmo de oração! -- E ser, depois de vir do coração, O pó, o nada, o sonho dum momento... São assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais dispersos, Com que eu iludo os outros, com que minto! Quem me dera encontrar o verso puro, O verso altivo e forte, estranho e duro, Que dissesse, a chorar, isto que sinto!! Florbela Espanca

Flower in the sky

Li Shuang

Papoilas

estou opiada de ti e percorres-me os nervos todos com papoilas borboletas vermelhas o meu corpo entrança-se de sonhos e sente-se caminhando por dentro aspiro-te como se me faltasse o ar e os perfumes dançam-me qualquer coisa como uma droga bem forte corpo e alma rezam pequenas orações gestos ritmados ao abraçar-te como que abraça sonhos coisa estranha opiada me preciso ou apenas vestida de papoilas e muito sol com luas por dentro para poder mastigar estes sonhos reais como mandrágoras Ana Mafalda Leite

Real hapiness within reach

Li Shuang

Sun of the forbidden city

Li Shuang

O vermelho das acácias na paisagem

cai ao chão a mais íntima aurora há-de vestir-me de cor rubra a matéria que tinge o céu e me deslumbra este assalto da aurora será meu enxoval meu dote de menina agora que sei o mistério e continuo donzela tu que pões o vermelho das acácias na paisagem estranho amor te foi cobrindo amarga toranja doce de papaia regressa de cada vez mais jovem a semente chama arde em lábios audaciosos neste acontecer saboroso eles são afeitos à incandescente terra a crescer um dom de mansidão em fundo laranja canta o palato assim aceso enquanto um rosário de contas pretas me escorre dos dedos devagarinho para o chão Ana Mafalda Leite

Looking over the cliff

Winslow Homer

Fisherman´s family

Winslow Homer

Where are the boats

Winslow Homer

Waiting for someone

Han Wu Shen

Sinto delicadamente o ressentimento

Sinto delicadamente o ressentimento dessa ausência que te traiu. A distância que consentiste prolongar e transformar em esquecimento, tecida de silêncio omisso, de tempo não pronunciado. Assim estou nesta manhã, ausente e longe do centro, na fronteira amena do coração, e vejo pássaros de asas azuis que deixam cair as tuas últimas palavras escritas, que te espalham à minha volta, e olho para linhas de horizonte onde deverias surgir, regressando de lugares onde apenas uma sombra morna te denuncia. Sinto delicadamente o ressentimento dessa ausência que te traiu, mas não foi acaso encontrar-te antes, nem circunstancial ou abstracto o nosso entendimento. Há uma mensagem escondida e secreta nesta manhã, um tempo a vir, já escrito, um mês próximo de remissão, e um recomeço.

A cold spring day

Han Wu Shen

Purple cloud

Han Wu Shen

Profile of a young chinese woman

Han Wu Shen

fragmento

são asas de alvoroço ou são sinais? são sombras agitadas na descida? são palavras aladas junto ao cais? são um rumor no vento? ou repetida animação do instante nas mnhãs quando ao passar da gente passa a vida e alguêm espera olhando as horas vãs? Vasco Graça Moura

A Noite

William-Adolphe Bouguereau

O Crepúsculo

William-Adolphe Bouguereau

O Dia

William-Adolphe Bouguereau

A Aurora

William-Adolphe Bouguereau

Tentações do Apocalipse

Não é de poesia que precisa o mundo. Aliás, nunca precisou. Foi sempre uma excrescência escandalosa que se lhe dissesse como é infame a vida que não vivamos para outrem nele. E nunca, só de ser, disse a poesia uma outra coisa, ainda quando finge que de sobreviver se faz a vida. O mundo precisa de morte. Não da morte com que assassina diariamente quantos teimam em dizer-lhe da grandeza de estar vivo. Nem da morte que o mata pouco a pouco, e de que todos se livram no enterro dos outros. Mas sim da morte que o mate como um percevejo, uma pulga, um piolho, uma barata, um rato. Ou que a bomba venha para estas culpas, se foi para isso que fizemos filhos. Há que fazer voltar à massa primitiva esta imundície. E que, na torpitude de existir-se, ao menos possa haver as alegrias ingénuas de todo o recomeço. Que os sóis desabem. Que as estrelas morram. Que tudo recomece desde quando a luz não fora ainda separada às trevas do espaço sem matéria. Nem havia um espírito flanando ocioso sobre as águas

Ler contra o silêncio | 2

Young women reading Valerie Ganz

Ser Poeta

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Áquem e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente! Florbela Espanca

Rua do Quelhas

Homenagem a Florbela Espanca Morre-se devagar neste país onde é depressa a mágoa e a saudade oh meu amor de longe quem me diz Como é a tua sombra na cidade Morre-se devagar em frente ao Tejo repetindo o teu nome lentamente cintura com cintura, beijo a beijo e gritá-lo, abraçado, a toda a gente Morre-se devagar e de morrer fica a cinza de um corpo no olhar oh meu amor a noite se vier é seara de nós ao pé do mar António Lobo Antunes

Meme

Aceite o desafio lançado pelo blog O que é feito de si Mrs Pankhurst? , de Cristina Nobre Soares, aqui deixo o meu Meme *: "Amar não acaba. É como se o mundo estivesse à minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera." Clarice Lispector, in A Descoberta do Mundo ...e passo o desafio ao Insustentá vel * – Um “meme” é um gen ou gene cultural que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou a teus descendentes. Os “memes” podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma. Simplificando: é um comentário, uma frase, uma ideia que rapidamente se propaga pela web, usualmente por meio de blogues. O neologismo “memes” foi criado por Richard Dawkins dada a sua semelhança fonética com o termo “genes”.

Aqui nesta praia | 31

Aprés le bain,  William-Adolphe Bouguereau

alba em memória de sophia

é quando a luz safira e cor de rosa a humedecer as nuvens, matinal, alastra pelas praias, vagarosa, e nas dunas rendilha o seu metal, é quando algas e mar, corais, espuma e sombras transparentes vêm na brisa, é quando em nós a lira desarruma a angústia e o silêncio e a imprecisa densidade do tempo e se combina do ouvido à alma na medida certa uma geometria cristalina, é quando um crespo deus pagão desperta a dar o alento próprio à maresia e canta ao encontrar-se com sophia. Vasco Graça Moura

Ler contra o silêncio | 1

Lesende Mädchen Franz Eybl

Ler contra o silêncio

Inicio hoje uma área temática nova, Ler contra o silêncio . ...uma ideia antiga, impulsionada pela inspiração de um livro recentemente oferecido, Mulheres que lêem são perigosas .

La Vie

Marc Chagall

Ninguêm meu amor

Ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Podem utilizá-lo nos espelhos apagar com ele os barcos de papel dos nossos lagos podem obrigá-lo a parar à entrada das casas mais baixas podem ainda fazer com que a noite gravite hoje do mesmo lado Mas ninguém meu amor ninguém como nós conhece o sol Até que o sol degole o horizonte em que um a um nos deitam vendando-nos os olhos. Sebastião Alba

Le songe

Marc Chagall

Estranho é o sono que não te devolve

Estranho é o sono que não te devolve. Como é estrangeiro o sossego de quem não espera recado. Essa sombra como é a alma de quem já só por dentro se ilumina e surpreende e por fora é apenas peso de ser tarde. Como é amargo não poder guardar-te em chão mais próximo do coração. Daniel Faria

Aqui nesta praia | 30

Daughters of the Sea,  Winslow Homer

After Vermeer - Three Women

Paul Kilsby Lady Writing a Letter with Her Maid e Girl Interrupted at Her Music Johannes Vermeer

Muitas tardes, o poema resume-se à cinza

Muitas tardes, o poema resume-se à cinza, ao que resta de algo que se consome em lentidão algo que ainda o vento não levou consigo. O esquecimento não acontece por acaso. Os olhos demoram-se nas imagens empoeiradas, num ou noutro detalhe mais persistente em nitidez para logo desaparecerem como um fumo irrequieto à minima brisa. Sorrir é tão natural como cerrar os olhos, depende da imagem que teima diante de nós, nessa procura inconsciente de todo o pensamento, e que força estala cá dentro nesse episódio da memória. Escrever é poder saltar de passado em passado, e fingir que nada nos pertence, que somos intocáveis, que o nosso nome é outro afinal e o rosto, variados reflexos do que a luz pode dele fazer. Fernando M. Dinis do blog FICO ATÉ TARDE NESTE MUNDO

After Vermeer - Two Women

Paul Kilsby A Maid Asleep e Lady with Her Maidservant Holding a Letter Johannes Vermeer

Mesmo que as palavras faltem

Mesmo que as palavras faltem deixa que o tempo suspenda os gestos e possamos ambos assistir à chuva fria no promontório secreto da cidade. Mesmo que os livros decepcionem segura a história que a imaginação criou na simples procura, quando tudo parecia pedaço de terra nova. Mesmo que nada te diga já decora o meu nome e viaja com ele onde nunca os lábios pousarão. Fernando M. Dinis do blog FICO ATÉ TARDE NESTE MUNDO

After Vermeer - The Cone

Paul Kilsby Woman in Blue Reading a Letter Johannes Vermeer

Soneto de julho

É muito tarde para não te amar. Tudo o que ouço é o sopro do teu nome. O que sinto é teu corpo, que consome — presente, ausente — o meu corpo. Luar em que me abraso, morro: teu olhar ofuscando memórias, onde some um mundo, e outro se ergue. Sede, fome e esperança. Ah, para não te amar é tão tarde que tudo é já distância, que só respiro este luar que me arde, este sopro sem praias do teu nome, esta pedra em que pulsa e medra a ânsia e esta aura, enfim, em que me envolve (é tarde!) o que és — presente, ausente — e me consome. Ruy Espinheira Filho

After Vermeer - The Balance

Paul Kilsby Woman Holding a Balance Johannes Vermeer

A Perfeição

O que me tranqüiliza é que tudo o que existe, existe com uma precisão absoluta. O que for do tamanho de uma cabeça de alfinete não transborda nem uma fração de milímetro além do tamanho de uma cabeça de alfinete. Tudo o que existe é de uma grande exatidão. Pena é que a maior parte do que existe com essa exatidão nos é tecnicamente invisível. O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos, a perfeição. Clarice Lispector

After Vermeer - The Curtain

Paul Kilsby Study of a Young Woman Johannes Vermeer

Quando fores velha

Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono, Dormitando junto à lareira, toma este livro, Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas; Muitos amaram os momentos de teu alegre encanto, Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor, Mas apenas um homem amou tua alma peregrina, E amou as mágoas do teu rosto que mudava; Inclinada sobre o ferro incandescente, Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou E em largos passos galgou as montanhas Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas. William Butler Yeats Tradução de José Agostinho Baptista

After Vermeer - The Cylinder

Paul Kilsby Girl with a Pearl Earring Johannes Vermeer

De cada amigo sinto falta das palavras

De cada amigo sinto falta das palavras; quem sabe sinto ainda mais falta do som de cada amigo. Desejaria agora mais carne na memória, o gosto dos ossos nos meus dedos. Desejaria agora vencer a nostalgia que aperfeiçoa tudo, arrasa causas e evidencia o êxito das perdidas. Desejaria agora ter-me equivocado. Por ter aprendido a deter aquelas coisas que entretanto perdi. Daniel Martínez i Ten Tradução de Rui Miguel Rocha

After Vermeer - The Pitcher

Paul Kilsby Young Woman with a Water Jug Johannes Vermeer

Não Basta

Não basta abrir a janela Para ver os campos e o rio. Não é bastante não ser cego Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. Há só cada um de nós, como uma cave. Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, Que nunca é o que se vê quando se abre a janela. Alberto Caeiro

After Vermeer - The Maidservant

Paul Kilsby The Maidservant Johannes Vermeer