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Mensagens

A mostrar mensagens de junho, 2007

Ler contra o silêncio | 7

A women reading by a window Pieter de Hoogh

Onde à nudez

Onde à nudez cabe o papel habitualmente atribuído a uma janela. Quando afasto as cores para no lugar delas não deixar senão a luz ou me debruço ao peitoril sobre os meus próprios intestinos, a ficção fica por conta dos relâmpagos. É como se habitasse uma cidade que tivesse um espelho por subúrbios e o mar viesse estilhaçar-se ao fundo da memória, onde se encontra o coração. Abro na página um buraco onde alicerço a casa, as letras vêm às janelas. Luís Miguel Nava

La Baigneuse Valpinçon

Homage to Ingres - La Baigneuse Valpinçon Patricia Watwood La Baigneuse Valpinçon Jean-Auguste Dominique Ingres

A Saída

Havia no seu corpo uma saída. Podia através dela ir até onde quisesse, de momento que a porta não ficasse a bater com um ruído que a maior parte das pessoas confundia com o bater do coração. Não consta que o sangue o perseguisse senão muito raramente e mesmo assim não para além da beira-mar. Trazia há algum tempo na memória um espelho onde quem quer que se abeirasse dele podia contemplar-se. Pelo espelho era possível ser os poços através dos quais a pele desaparece, as ondas momentaneamente imóveis, as areias a assaltar-lhe o coração. Luís Miguel Nava

Portrait of Francesca

Patricia Watwood

The hand of cotan

Paul Kilsby

Diane de Poitiers as Sabina, wife of Neru, with plums

Paul Kilsby

Ler contra o silêncio | 6

The New Novel Winslow Homer

Adam and Eve

Paul Kilsby

...sobre a Eutanásia

"(...) Se alguém que eu amo tiver que morrer antes do suposto, não quero pensar que irei encontrá-lo numa outra vida. Quero apenas pensar que morreu, que tudo acabou. Mas prefiro, em todo o caso, que acabe bem, que essa pessoa acabe de bem comigo. Mesmo que isso implique pôr um termo ao seu sofrimento. No meu caso, é essa a luz que me guia. É esta a luz que me apazigua a dor da perda: saber que os que partem, partem de bem comigo." Texto de Henrique Fialho sobre a Eutanásia, a ler no Insónia .

Cão do Nilo

Aqui deixo os mortos que me pertencem e os vivos com que me reparto. Cão do Nilo, sobreviverei bebendo na corrida, entre o ranger metálico das culatras e o bafo cálido da pólvora. Sigo ao sabor da corrente, um destroço à tona de água. Perto do fim, o cerco. Adeus amigos, ternura diluída na neblina, começo a esquecer-vos. Perdoam-me os mortos, enigmáticos, sorrindo e escurece, no corredor, envergonhada, a luz. De pura cobardia reincide o coração. Na margem do rio indistintos vultos acenam discretamente. Transidas, não esvoaçam as aves de outrora, imóvel e erecto o canavial petrificado. Outras vozes sepultam já o eco da minha. Foragido da memória irei por esse mundo além. Amigos, fantasmas, nomes, lugares sabidos de cor, quero chamar-vos esquecimento. Não estarei com os que verão o declive verdejante da montanha, nem alcançarei a Terra Prometida. Errarei o resto dos meus dias através de paragens inóspitas, levando comigo a vaga lembrança de um aceso país povoado de

The beloved

Dante Gabriel Rossetti

Amador sem coisa amada

Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão. Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados. Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Sou amador da existência, não chego a profissional. António Gedeão

Tríptico

«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu feroz sorriso, os dentes, as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida. O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas. Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque. É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas. Transforma-se em noite extintora. Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga. Que transforma a coisa amada. Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o

Preciso amar-te por isso digo fica esta noite

Preciso amar-te por isso digo fica esta noite, depois os dias do nosso trabalho farão luz sobre o tempo. Tenho na cabeça a tempestade, tantas vezes recordo aquele corpo que não sabia do prazer que me dava, tantas vezes acordo e o seu nome quase me escapa dos lábios, reconheço as feridas, os golpes todos, se lembro é porque quero esquecer. Fica esta noite, mais outra, o tempo que demora a cumprir a decisão de amar-te. E vamos fazendo o curso dos dias com algumas opiniões parecidas e ódios ás coisas culpadas. A gente que diz coisas de silêncio, os andaimes da cidade tapando saídas, as horas certas quando dizemos adeus. E que sentido têm estas lágrimas? Eu vivo neste ano e já me esqueço de mim, apenas vou precisar amar-te, depressa. .................................................... Venho de distribuir tarefas e de ouvir ferro contra ferro, o cheiro a tinta, barcos em areia artificial, útil mentira que me conto. Regresso à cidade de onde nunca soube partir, pelo caminho passam aos olhos

Aqui nesta praia | 33

Baigneuse,  William-Adolphe Bouguereau

o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles. o suporte da música pode ser uma apetência dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando por uns frágeis momentos, concentrado num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia. Vasco Graça Moura

Nostalgia

Li Shuang

O ar fendido pela borboleta

O ar fendido pela borboleta quimérica e nocturna e de cor azul. O pólen do voo no rumor das achas da lareira amortecida. Os teus olhos vêm para os meus com a água da paz de termos visto o mesmo arco de vida atravessar o lugar onde estávamos sózinhos onde vogava no céu tarde o silêncio do conspirador. No chão de brisa de poeira o tumulto do mundo é um luar sombrio e essa dor serena leva de nós todas as dores. Joaquim Manuel Magalhães

Expectation

Li Shuang

Se estás a chegar

Se estás a chegar, a ir-te embora estende tuas mãos, com as flores fica o perfume na minha camisola. As raízes vindo sob a areia ocultas do sol buscando a água abrem-se distantes da semente em lugares de luz, aí bate o vento. Outra árvore faz agora a sombra onde nos sentámos rosto a rosto as mãos presas na sede da camisa. O velto cacto voltou a rebentar no tronco seco já sem espinhos um pequeno punho humedecido em breve abrirá noutra flor. Joaquim Manuel Magalhães

Retratos da Mongólia

Sarula Gerila Gaowa Tuya Dedema Engma Xue Mo

The dream

Xue Mo

2 anos Insustentáveis

O INSUSTENTÁVEL faz hoje 2 anos! Parabéns e... escuta esta música ... escuta esta música, esta ténue quietação: vai até onde descerem as raízes do coração por humildade. escureceu mais cedo e vais precisar dela. já não há rosas no voo das palavras, só estranhezas, parques para a chuva, e há na casa do ser sangue e suor, alguns resíduos duma enredada, dura aprendizagem entrelaçada nelas, devagar. o remorso das coisas organiza-se e é sinuosa a sua irrupção no interior de nós mesmos. nós os hesitantes, os que delas tanto quisemos ou deitámos pra fora da lembrança a sua imagem veemente e tanta paz incerta procurando-se na mordedura de um silêncio triste. tanto aprendi. deveria durar uma defesa contra o interdito? ou a serenidade é tão difícil que só a alcança o coração tumultuoso? como se a noite fosse uma enseada sem serpentes ou fosse às vezes pura tempestade, eu quero ver aqui as marcas do destino, o seu tropel diluído ou acerado, ver aqui as marcas que vão contra a solidão. quero a pe

O mundo parecia morrer todas as tardes...

Ryder's House Roofs of the Cobb Barn Cape Cod Afternoon Corn Hill Hill and Houses Bill Latham's House Edward Hopper

Fragmento de...

Frankie e o casamento de Carson McCullers "(...) O mundo parecia morrer todas as tardes, e já nada se movia. Por último, o Verão era como um sonho verde agoniante, ou como uma selva silenciosa e absurda, debaixo de vidro.(...)"

Ler contra o silêncio | 5

Shakespeare and Company Kenney Mencher

Eleanor (1948)

Harry Callahan

Linha de fogo quando olhamos a direito

Linha de fogo quando olhamos a direito, não posso reparar ao mesmo tempo nos teus olhos e no que os teus olhos vêem. Apenas pressinto as árvores e o avanço calmo de três barcos entrando agora. Agora, espiral medonha que me arrefece os braços e inventa luz mais clara, mar em vez deste tejo. Fiz tanta promessa, quero partir para onde não pareça que não cumpro. ....................................................... Se não limpas as paredes, se não apanhas a conversa mais calculada, as folhas que se enrolam no chão. Rio-me do sofrimento. E levo coisas esquecidas até à vedação de arame, a uma linha da cor do fogo, aí deixo cair palavras. Não dou por que passe o tempo. Helder Moura Pereira

Eleanor (1950)

Harry Callahan

Por mais que possa digo que não posso

Por mais que possa digo que não posso. E vou chegando a medo perto de ti, deixas uma réstea da linha do corpo, mapa de minas, bico de esquina. Deixas que aproxime às vezes os braços assim a meio dos gestos, a boca entre lançar sorrisos e fechar-se. Agora vou em hesitação. Agora decido, não recuarei, abro o portão do quintal, vou tratar das flores, espalhar os grãos de milho. Esquecer as colinas sobre a pele. Enquanto não houver segura idade. Helder Moura Pereira

Bathsheba

Homage to Rembrandt Bathsheba Patricia Watwood Bathsheba at her bath Rembrandt van Rijn

Corpo

Corpo serenamente construído Para uma vida que depois se perde Em fúria e em desencontro vivido Contra a pureza inteira dos teus ombros. Pudesse eu reter-te no espelho Ausente e mudo a todo outro convívio Reter o claro nó dos teus flancos Rodeados pelo ar agradecido. Corpo brilhante de nudez intensa Por sucessivas ondas construído Em colunas assente como um templo. poema de Sophia de Mello Breyner Andresen pintura de Mirta Kupferminc

The Northeaster

Homer Winslow

Mar Sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim. A tua beleza aumenta quando estamos sós E tão fundo intimamente a tua voz Segue o mais secreto bailar do meu sonho. Que momentos há em que eu suponho Seres um milagre criado só para mim. Sophia de Mello Breyner Andresen

Ler contra o silêncio | 4

The reading girl Theodore Roussel

canção breve

é quando a madrugada acende a parda tonalidade rósea do céu antes de o sol nascer e as nuvens vão amarelando. tarda um pouco mais o ouro em pôr-se ao léu e a avermelhar-se logo para arder. é quando entre os lençóis tens um mexer do corpo a aconchegar-se inda ao tamanho do sono, um hesitar, a lentidão das grandes decisões. e então em lesto andar os pés no chão e a espuma da nudez dando ao teu banho estrias brancas, brilhos, borbotões. e o teu corpo molhado. e o teu sorriso por entre as gotas de água. o secador deita o seu sopro quente e o teu cabelo fica menos liso, mas há ainda bafos de vapor condensados no espelho à tua frente. até que pousas secador e pente e és ninfa nua que se cobre de folhas de hera e cachos de glicínia e então o meu olhar procura encantamentos e define-a pelas curvas macias que desdobre cada gesto traçado pelo ar. que esta canção tão breve, amor, perpasse à flor da tua pele e nela se entrelace enquanto houver no mundo uma manhã, mas de ti não revele mais que essa

Dança de Junho

Em silêncio nas coisas embaladas Vão dançando ao sabor dos seus segredos. Nos seus vestidos brancos e bordados Raios de lua poisam como dedos, E em redor baloiçam arvoredos Escuros entre os céus atormentados. Sophia de Mello Breyner Andresen

Aqui nesta praia | 32

Girls on the beach,  Hermann Seeger

Três Mulheres, poema a três vozes (VI)

PRIMEIRA VOZ: Por quanto mais tempo poderei ser um muro contra o vento? Por quanto mais tempo Poderei suavemente obscurecer o sol com a palma da minha mão? Interceptar as setas azuis da lua fria? As vozes da solidão, as vozes da amargura Agarram-se às minhas costas infatigavelmente. Como poderá acalmá-las esta canção de embalar? Por quanto mais tempo poderei ser um muro em redor da minha terra verde Por quanto mais tempo poderão as minhas mãos Proteger esta ferida, e as minhas palavras Pássaros luminosos no céu, consolando, consolando? É tremendo Ser exposta: como se o meu coração Pusesse uma máscara e penetrasse no mundo. Sylvia Plath traduzida por Ana Gabriela Macedo

Twilight

Anthony J. Ryder

Brevíssimo crepúsculo

Procuro o que não deixa de por meias palavras fazer ver as ondas ascendendo do fundo dos baús. A água a contas com as trevas. Fascinam-me essas ondas, bem como uma pedra às mãos de quem procura abrir nela um sorriso, o céu que neste poema sei subentendido e apenas aos olhos dum rapaz a paixão trouxe num brevíssimo crepúsculo antes de ganhar velocidade e, nos meus ombros, as mãos desse rapaz quase de rapariga prontas a voar. Sinto a romper na boca os dentes como a ventania. Luís Miguel Nava

À luz da lua | 19

Bonding Han Wu Shen

O poema ensina a cair

O poema ensina a cair sobre vários solos desde perder o chão repentino sob os pés como se perde os sentidos numa queda de amor,ao encontro do cabo onde a terra abate e a fecunda ausência excede até à queda vinda da lenta volúpia de cair, quando a face atinge o solo numa curva delgada subtil uma vénia a ninguém de especial ou especialmente a nós uma homenagem póstuma. Luiza Neto Jorge