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Mensagens

A mostrar mensagens com a etiqueta Rui Knopfli

Testamento

Se por acaso morrer durante o sono não quero que te preocupes inutilmente. Será apenas uma noite sucedendo-se a outra noite interminavelmente. Se a doença me tolher na cama e a morte aí me for buscar, beija Amor, com a força de quem ama, estes olhos cansados, no último instante. Se, pela triste monotonia do entardecer, me encontrarem estendido e morto, quero que me venhas ver e tocar o frio e sangue do corpo. Se, pelo contrário, morrer na guerra e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia, quero que saibas, Amor, quero que saibas, pelo cérebro rebentado, pela seca veia, pela pólvora e pelas balas entranhadas na dura carne gelada, que morri sim, que me não repito, mas que ecoo inteiro na força do meu grito. Rui Knopfli

1 ano

O hálito azul da tarde faz hoje 1 ano! Estou contente, e neste dia, só há um poema que aqui faz sentido deixar... As imagens quebradas Uma última vez percorro a cidade no dia em que começa a minha morte. Reconheço estes lugares apesar da mudança e a sua esquiva familiaridade roça-me as tolhidas asas da memória. Aqui escrevi. Naquela sombra imaginei. Entre uma e outra coisa, vivi. O bastante para saber que toda a vida em seu acidentado curso se salda por longo reiterar de aproximações rumo à verdade, confusa teia de retrocessos, falsas pistas, infrutíferas buscas, constante e pertinaz correcção de rotas através da bruma ou da luz mais intensa. Sobre a rocha escaldante larguei doloridamente a pele; adormeci no letargo da crisálida; frágeis romperam-se-me as asas antes do voo. As portas franqueadas abriam para o labirinto e o descontínuo das imagens. Escrevi de coisas inúteis, relatei factos comezinhos, sobre cinzas e nada discorri em favor de uma ordem pressen...

Cão do Nilo

Aqui deixo os mortos que me pertencem e os vivos com que me reparto. Cão do Nilo, sobreviverei bebendo na corrida, entre o ranger metálico das culatras e o bafo cálido da pólvora. Sigo ao sabor da corrente, um destroço à tona de água. Perto do fim, o cerco. Adeus amigos, ternura diluída na neblina, começo a esquecer-vos. Perdoam-me os mortos, enigmáticos, sorrindo e escurece, no corredor, envergonhada, a luz. De pura cobardia reincide o coração. Na margem do rio indistintos vultos acenam discretamente. Transidas, não esvoaçam as aves de outrora, imóvel e erecto o canavial petrificado. Outras vozes sepultam já o eco da minha. Foragido da memória irei por esse mundo além. Amigos, fantasmas, nomes, lugares sabidos de cor, quero chamar-vos esquecimento. Não estarei com os que verão o declive verdejante da montanha, nem alcançarei a Terra Prometida. Errarei o resto dos meus dias através de paragens inóspitas, levando comigo a vaga lembrança de um aceso país povoado de ...