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navegava-se...

navegava-se na arrogância das diferenças pela emaranhada teia de ruelas que constituía o centro da pequena cidade quase flutuante. misturavam-se os cheiros das especiarias com o hálito morno dos detritos. fervilhava a vida nos contornos das faces opacas e nas paredes roídas pelo tempo. tudo se movia convulsionando as veias deste pequeno corpo, largos e esquinas de tendas de "min", pato assado, frutos e vestuário. macau, 10 horas de uma manhã húmida de um julho espesso. caíu a noite absorvendo o dia.

o sono emergia das janelas veladas. no asfalto vivia-se ainda o chiar dos pneus e sob as árvores da praia grande mantinha-se a troca amorosa das carícias, restos das escassas horas do trabalho imposto. o tufão passou ao largo, somente as águas castanhas do delta do rio das pérolas se mostraram impacientes, ondulando em pequenas cristas, balançando as panelas de caldo suspensas nos juncos ancorados.

tudo se passa em termos inconsequentes, sem margens. o lodo e a muralha habitam a noite concretamente. a cidade ilumina-se num carrossel de cores, liquidando o lixo e a miséria. não há espaços. nova vida se inicia nas ruelas e esquinas procurando no prazer a solidão dos neons embriagados. os olhos escondidos na penumbra das fábricas surgem agora na aposta possível no sorriso passivo e terno duma jovem que passa.

esconde-se a cidade na noite curta reduzindo o tempo. macau nasce dos restos da lua multiplicando as células nos ventres tensos, nas mãos hábeis, nos corpos lívidos.

secam-se-me os lábios de falar a noite.
e o poema vem, bardo, das entranhas.

Alberto Estima de Oliveira

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