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Mensagens

Ler contra o silêncio | 7

A women reading by a window Pieter de Hoogh

Onde à nudez

Onde à nudez cabe o papel habitualmente atribuído a uma janela. Quando afasto as cores para no lugar delas não deixar senão a luz ou me debruço ao peitoril sobre os meus próprios intestinos, a ficção fica por conta dos relâmpagos. É como se habitasse uma cidade que tivesse um espelho por subúrbios e o mar viesse estilhaçar-se ao fundo da memória, onde se encontra o coração. Abro na página um buraco onde alicerço a casa, as letras vêm às janelas. Luís Miguel Nava

La Baigneuse Valpinçon

Homage to Ingres - La Baigneuse Valpinçon Patricia Watwood La Baigneuse Valpinçon Jean-Auguste Dominique Ingres

A Saída

Havia no seu corpo uma saída. Podia através dela ir até onde quisesse, de momento que a porta não ficasse a bater com um ruído que a maior parte das pessoas confundia com o bater do coração. Não consta que o sangue o perseguisse senão muito raramente e mesmo assim não para além da beira-mar. Trazia há algum tempo na memória um espelho onde quem quer que se abeirasse dele podia contemplar-se. Pelo espelho era possível ser os poços através dos quais a pele desaparece, as ondas momentaneamente imóveis, as areias a assaltar-lhe o coração. Luís Miguel Nava

Portrait of Francesca

Patricia Watwood

The hand of cotan

Paul Kilsby

Diane de Poitiers as Sabina, wife of Neru, with plums

Paul Kilsby

Ler contra o silêncio | 6

The New Novel Winslow Homer

Adam and Eve

Paul Kilsby

...sobre a Eutanásia

"(...) Se alguém que eu amo tiver que morrer antes do suposto, não quero pensar que irei encontrá-lo numa outra vida. Quero apenas pensar que morreu, que tudo acabou. Mas prefiro, em todo o caso, que acabe bem, que essa pessoa acabe de bem comigo. Mesmo que isso implique pôr um termo ao seu sofrimento. No meu caso, é essa a luz que me guia. É esta a luz que me apazigua a dor da perda: saber que os que partem, partem de bem comigo." Texto de Henrique Fialho sobre a Eutanásia, a ler no Insónia .

Cão do Nilo

Aqui deixo os mortos que me pertencem e os vivos com que me reparto. Cão do Nilo, sobreviverei bebendo na corrida, entre o ranger metálico das culatras e o bafo cálido da pólvora. Sigo ao sabor da corrente, um destroço à tona de água. Perto do fim, o cerco. Adeus amigos, ternura diluída na neblina, começo a esquecer-vos. Perdoam-me os mortos, enigmáticos, sorrindo e escurece, no corredor, envergonhada, a luz. De pura cobardia reincide o coração. Na margem do rio indistintos vultos acenam discretamente. Transidas, não esvoaçam as aves de outrora, imóvel e erecto o canavial petrificado. Outras vozes sepultam já o eco da minha. Foragido da memória irei por esse mundo além. Amigos, fantasmas, nomes, lugares sabidos de cor, quero chamar-vos esquecimento. Não estarei com os que verão o declive verdejante da montanha, nem alcançarei a Terra Prometida. Errarei o resto dos meus dias através de paragens inóspitas, levando comigo a vaga lembrança de um aceso país povoado de ...

The beloved

Dante Gabriel Rossetti

Amador sem coisa amada

Resolvi andar na rua com os olhos postos no chão. Quem me quiser que me chame ou que me toque com a mão. Quando a angústia embaciar de tédio os olhos vidrados, olharei para os prédios altos, para as telhas dos telhados. Amador sem coisa amada, aprendiz colegial. Sou amador da existência, não chego a profissional. António Gedeão

Tríptico

«Transforma-se o amador na coisa amada», com seu feroz sorriso, os dentes, as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído e silêncio. Traz o barulho das ondas frias e das ardentes pedras que tem dentro de si. E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado silêncio da sua última vida. O amador transforma-se de instante para instante, e sente-se o espírito imortal do amor criando a carne em extremas atmosferas, acima de todas as coisas mortas. Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro. E a coisa amada é uma baía estanque. É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas. Transforma-se em noite extintora. Porque o amador é tudo, e a coisa amada é uma cortina onde o vento do amador bate no alto da janela aberta. O amador entra por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate. O amador é um martelo que esmaga. Que transforma a coisa amada. Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher que escuta fica com aquele grito para sempre na cabeça a arder como o ...

Preciso amar-te por isso digo fica esta noite

Preciso amar-te por isso digo fica esta noite, depois os dias do nosso trabalho farão luz sobre o tempo. Tenho na cabeça a tempestade, tantas vezes recordo aquele corpo que não sabia do prazer que me dava, tantas vezes acordo e o seu nome quase me escapa dos lábios, reconheço as feridas, os golpes todos, se lembro é porque quero esquecer. Fica esta noite, mais outra, o tempo que demora a cumprir a decisão de amar-te. E vamos fazendo o curso dos dias com algumas opiniões parecidas e ódios ás coisas culpadas. A gente que diz coisas de silêncio, os andaimes da cidade tapando saídas, as horas certas quando dizemos adeus. E que sentido têm estas lágrimas? Eu vivo neste ano e já me esqueço de mim, apenas vou precisar amar-te, depressa. .................................................... Venho de distribuir tarefas e de ouvir ferro contra ferro, o cheiro a tinta, barcos em areia artificial, útil mentira que me conto. Regresso à cidade de onde nunca soube partir, pelo caminho passam aos olhos...

Aqui nesta praia | 33

Baigneuse,  William-Adolphe Bouguereau

o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles. o suporte da música pode ser uma apetência dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando por uns frágeis momentos, concentrado num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia. Vasco Graça Moura