Avançar para o conteúdo principal

1 ano

O hálito azul da tarde faz hoje 1 ano!
Estou contente, e neste dia, só há um poema que aqui faz sentido deixar...


As imagens quebradas

Uma última vez percorro a cidade no dia
em que começa a minha morte. Reconheço
estes lugares apesar da mudança e a sua
esquiva familiaridade roça-me as tolhidas
asas da memória. Aqui escrevi. Naquela

sombra imaginei. Entre uma e outra coisa,
vivi. O bastante para saber que toda a vida
em seu acidentado curso se salda por longo
reiterar de aproximações rumo à verdade, confusa
teia de retrocessos, falsas pistas, infrutíferas

buscas, constante e pertinaz correcção
de rotas através da bruma ou da luz
mais intensa. Sobre a rocha escaldante larguei
doloridamente a pele; adormeci no letargo
da crisálida; frágeis romperam-se-me

as asas antes do voo. As portas franqueadas
abriam para o labirinto e o descontínuo
das imagens. Escrevi de coisas inúteis, relatei
factos comezinhos, sobre cinzas e nada
discorri em favor de uma ordem pressentida.

O filho do homem apenas conhece a visão fragmentária
das imagens quebradas que o sol revela. Todo
o resto, como as raízes mais profundas, lhe é oculto.
Só o vento e a pedra e a árvore florescendo
de fronte importam. Só tu, meu Deus irónico,

em quem não creio, conhecerás talvez o tamanho
inteiro do frio fogo em que me consumo. A verdade
está próxima. Morrer é proventura alcançá-la.
Percorro a cidade, artérias de silêncio tumular,
pisando a áspera areia solta que o sol

legou após as chuvas de solstício. Uma
parede, algures, guarda-me a sombra antiga,
a brisa inerte dobra a melancolia dos girassóis
ao comprido da estirada tarde de Janeiro. Do zinco
doente desprendem-se murmúrios, vozes tutelares

que, num recesso ignoto, o tempo guardou avaro.
Ao longe um latir de cães estilhaça o sereno
espelho do horizonte em que trémulas casuarinas
perfilam a distância. Apenas legível, na parede
permanece inscrita uma sombra. Uma sombra

demora-se onde humidade, limos e musgo
obliteram já o riso original. Enquanto
dobram os girassóis, e a tarde com eles, falam-lhe
mansas as vozes. Assim, uma última vez, lento,
percorro a cidade procurando penosamente

as poucas palavras que me restam e o vazio ofegante
que há entre elas. Já nada espero. Tão-pouco
o que em mim se exprime é desespero. Saber
e amargura não querem coexistir. Quem tudo
perdeu, que mais poderá vencer? Caminho

pelos lugares queridos, sem tristeza, nem mágoa,
altas, condoídas árvores, lagos serenos escorrendo
de meus olhos, hálito azul da tarde que, por cair,
de sombras vai tranquilizando o horizonte. Só,
meu coração, bate contra a pedra e o silêncio.


Rui Knopfli


...ao escrever agora este poema e ao relê-lo, apercebo-me, o quanto estas palavras impregnaram alguns dos meus dias neste último ano...cá continuaremos...

A todos os que se aproximaram deste cantinho na tarde...I love being here with You


Comentários

Marx disse…
Ana Isabel, Parabéns. Pelo blog. Pelo aniversário. Pela vela escolhida. Fico a aguardar pelo próximo.
Rogério Matos disse…
Dear
Adoro o teu blog, sabes disso, né?
love you
Ana Isabel disse…
Obrigada Marx. Espero continuar a contar com a sua companhia.

Roger
Sobretudo a ti devo o impulso de me lançar nestas águas...obrigada!
CNS disse…
Parabéns Ana, ainda que atrasados... Pelo aniversário e pelo belissimo espaço onde gosto de repousar. Obrigada.
Ana Isabel disse…
Obrigada Cristina, és sempre bem vinda! Espero que a tua pausa tenha sido revigorante.

Mensagens populares deste blogue

XTERIORS XVII

  Desirée Dolron

O Canavial e o Mar

O que o mar sim ensina ao canavial: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial sim ensina ao mar: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não ensina ao canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial não ensina ao mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. João Cabral de Melo Neto

Princípios

Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor. Nuno Júdice