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A Biblioteca Vazia

Conto escrito sobre A Biblioteca, de Zoran Zivkovic.

Caros companheiros do clube de leitura

Pareceu-me apropriado sugerir que nos encontrássemos hoje para uma degustação. No encalce de Zoran cada um de nós deliciar-se-ia com o seu livro, partilhando os sabores originais que tal manjar descobriria, ou não…contudo… encontro-me impedida de o fazer.

Terminada ontem a leitura, guardei como sempre o meu Zoran, na minha mochila, no seu compartimento. Esta seria a última vez que nos veríamos. Em casa, quando mergulhei a minha mão para recolher, ciosa, e uma a uma, todas as bibliotecas lidas, não as encontrei. Nenhuma, sem explicação e sem rasto.

Nunca, nenhum livro, por muito fraco, decrépito, ruim ou danado que fora, se atrevera a deixar alguém. Mas Zoran fê-lo. Zoran atreveu-se a desafiar o impossível. Zoran chamou-me de modo furtivo e dissimulado, abraçou-me, levou-me por atalhos singulares e estrangeiros. Desafiou-me no exato e cirúrgico modo que sabia me aprazer e, depois, sem mapa e sem código secreto ainda revelado, partiu.

Ainda estranha, só, e desconvencida, entrei no hall da minha casa e olhei para o irreparável. Nada me aguardava. As estantes, onde nas horas anteriores e matinais se acomodavam ainda, confortáveis, afeitos e familiares, inúmeros livros de tantos tamanhos, cores e cheiros, estavam agora despojadas e desoladas no seu vazio. Tristes e culpadas por, de algum modo, terem falhado na sua guarda.

Cheirei-as no desespero insano deles ainda estarem por ali, de algum modo, num estado existencial improvável. Nada. Apenas um vazio clórico e estéril.

Aquele espaço é agora um bairro desalojado e ímpio. Sem misericórdia e sem perdão. Não há ninguém a quem procurar, não há ruído de viagens naquela primeira estante, não serei mais saudada pelos poetas encostados mais a meio, eles que me cantam, e me amam, sem compromisso e sem abandono, não terei mais conversas ao final do dia com os livros que me esperavam junto à porta. Não saberei de mais intrigas, ou mal entendidos, das mortes ocorridas, as lutas travadas, a vida gerada.

Resta-me a biblioteca vazia.

Preciso encontrar Zoran. Ele terá de me revelar esta singularidade.

Não sei se chegarei a tempo ao nosso encontro...

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