Avançar para o conteúdo principal

Boca da Foz (V)

Pelo caminho do estaleiro vê-se uma linha de luzes que ilumina os últimos homens que regressam a casa. Ouvem-se amiúde, pedaços da sua conversa, e gargalhadas. O mesmo ritual de todos os dias a refocilar o ânimo e a camaradagem que os une.
Antes de entrar em casa, Natália vê Sebastião encostado na janela do quarto e lembra-se das pequenas conversas que têm. Recorda-se das primeiras, quando ele lhe perguntava, várias vezes, e sempre como se fosse a primeira vez: “Para onde foram os papás?”. Natália respondia-lhe: “Partiram, meu amor!”. Ao final de algum tempo, provavelmente depois de Sebastião considerar que a mesma resposta sempre dada seria um sinal convincente sobre a sua veracidade, começou a questionar: “Para onde?”. E aí Natália respondeu “Para as estrelas!”. Depois disso, passaram a falar de muitas outras coisas, e de astronomia. Sebastião começou a interessar-se pelos cometas, pelos planetas e pelas estrelas e, todos os dias, Natália lhe ensinava uma palavra nova sobre o universo. Paralaxe tinha sido a palavra de hoje e ele estava absolutamente fascinado. Encostado ao vidro da janela olhava um céu repleto de retas que ia traçando e desenhando numa folha de papel. Um autêntico xadrez espacial.

A lua move-se suavemente. Ouve-se ao longe o caminhar suave das águas do rio, sem pressa de chegar ao mar. Natália já deitou Sebastião e, sentada no alpendre, espera. Daquele lugar, avista a praia pequena no lado mais norte da vila. Fica atenta. Há noites em que vê alguém a mergulhar naquelas águas. Uma mulher de cabelos longos e ondulados, que se incendeiam quando um raio de luar lhes toca. E um homem que chega depois. Abraçam-se. Agarram-se. Prendem-se. Juntos parecem duas asas. Natália observa-os com profunda admiração. Guarda-os de longe. Emociona-se. Reconhece-os.

Uma luz pálida dança na charneca ao seu lado, aproxima-se, roça nas suas pernas e pára.  

Simão abre o vidro do carro e respira fundo o ar tépido daquela noite. Aguarda um momento dentro da viatura e olha para Natália sentada no alpendre. Ela espera. Aquela mulher é o seu abrigo, a sua carne, a sua luta e a sua paz. Lê toda a sua vida naquele pequeno corpo iluminado. Simão hesita em sair do carro. Aquele momento é sublime e belo. Quase insustentável. Natália espera. A lua move-se como um candelabro mágico. Simão abre a porta do carro. Ela sorri.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

XTERIORS XVII

  Desirée Dolron

O Canavial e o Mar

O que o mar sim ensina ao canavial: o avançar em linha rasteira da onda; o espraiar-se minucioso, de líquido, alagando cova a cova onde se alonga. O que o canavial sim ensina ao mar: a elocução horizontal de seu verso; a geórgica de cordel, ininterrupta, narrada em voz e silêncio paralelos. O que o mar não ensina ao canavial: a veemência passional da preamar; a mão-de-pilão das ondas na areia, moída e miúda, pilada do que pilar. O que o canavial não ensina ao mar: o desmedido do derramar-se da cana; o comedimento do latifúndio do mar, que menos lastradamente se derrama. João Cabral de Melo Neto

Princípios

Podíamos saber um pouco mais da morte. Mas não seria isso que nos faria ter vontade de morrer mais depressa. Podíamos saber um pouco mais da vida. Talvez não precisássemos de viver tanto, quando só o que é preciso é saber que temos de viver. Podíamos saber um pouco mais do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada sabemos do amor. Nuno Júdice