Natália desce a rua rapidamente. Saiu à sorrelfa de casa sem avisar Sebastião
quando reparou que se esquecera de um dos sacos de compras na mercearia. Quando
entra no caminho que vai dar à praça cruza-se com Gabriel, que vem em sentido
contrário:
- Olá Gabriel!
Ele responde-lhe uns passos mais à frente:
- Natália! – e a resposta parece mais um apelo.
Natália vira-se. Olha-o. O corpo de Gabriel no meio da rua parece absorvido pelo
azul-escuro do mar, ao longe. Lenta e dolorosamente, quase desaparece.
Já com o saco esquecido na mão, pára à porta da
mercearia. Apetece-lhe andar. A sua cabeça nunca pára mas quando caminha pensa tudo
mais claramente. Havia um lado muito físico no ato de pensar. O movimento
arredondava cada aresta de cada interrogação e quase tudo se encaixava de forma
perfeita.
Virou-se no sentido inverso ao de sua casa e seguiu
em direção à praça. Um pouco mais à frente, pára no pequeno miradouro. Olha
para a estrada que entra na vila. Espera ver o carro de Simão, que saiu há
cerca de dois dias para entregar os seus trabalhos. Devia chegar hoje. Observa
a noite a instalar-se e repara que já não ouve os trabalhos no estaleiro. Dali avista
grande parte das casas, a igreja e os sinos que só tocam quando há missa. Os
olhos de Natália caem no mar. O mar enorme às portas de Boca da Foz. Imagina
como seria a onda fatídica de Alberto. Sorri. Aquele pedaço de terra parece por
vezes tão minúsculo e tão longe do mundo que é como se vivessem numa ilha e, em
certas ocasiões, nem isso, sente-se num pequeno barco perdido, no centro do
imenso pélago. Natália sente-se
muitas vezes, ela própria, uma ilha. Lembra-se de Sebastião e volta-se para
regressar a casa. Olhou mais uma vez para o local onde passa a estrada, um fino
risco quase a desaparecer. Nenhum carro.
A noite caíra definitivamente. Ao sair da praça,
repara na luz da casa de esquina, ao fundo da rua principal. Foi recentemente
alugada a uma mulher, Maria Clara. Já a vira uma vez. Uma mulher de estatura
média, de tez morena e uns enormes e redondos olhos verdes. O grupo de pessoas
que se juntou na sua casa não passou despercebido. Eram um grupo singular com
um leve ar de súcia e, no dia da
mudança, depois de defenestrarem
todas as impurezas, entraram móveis, cortinados e uma quantidade curiosa de
caixas de vários tamanhos. Este facto alimentou uma certa curiosidade à volta
desta nova residente. Soube-se, uns dias depois, que Maria Clara via o que
estava para vir na vida de quem quer que fosse. Via o futuro nas velas. Uma
certa perplexidade, não pela adivinhação, mas pelas insuspeitas possibilidades
contidas numa vela, levaram a D. Eduarda da mercearia a “pesquisar” mais alguma
informação, telefonando à filha que era professora.
- Licnomancia!
– disse, numa manhã, na sua mercearia, com uma exagerada expetativa no impacto
que pensava causar. Mas apenas o Sr. Inácio, o seu dedicado marido, que se
tornara um obsessivo xeleléu,
reagiu, com um entusiasmo igualmente desproporcionado.
- Licnomancia!
– repetiu, ligeiramente impaciente e nervosa, mas sem perder o ar de mistério. Fingiu
não entender um certo tergiversar no
comportamento dos presentes e, ainda que ninguém tenha verbalizado alguma
interrogação, explicou que era esse o nome da prática adivinhatória de Maria
Clara.
Levada por que ventos, e com que propósito, Maria
Clara tinha vindo para este lugar só o tempo o diria.
Natália sentiu uma brisa perfumada a espalhar-se
pela rua. Abrandou o passo para haurir
deliciada o perfume das folhas secas, cuidadosamente misturadas e vagarosamente
fumadas. Vinha da casa de Raul. Estava sentado no degrau da porta como habitual
àquela hora. Natália acenou-lhe. Raul fez um gesto com o cachimbo.
Nascera numa família de pescadores, como alguns
outros dos habitantes de Boca da Foz mas, no caso de Raul, nascera mesmo no
mar, em plena faina. A sua mãe acompanhava o pai em quase todas as suas saídas
e, numa dessas ocasiões, ele nascera. O cheiro a maresia entranhou-se na sua
pele e no seu sangue e ele tornou-se no homem do mar que verdadeira e
literalmente era. Essa relação transformou-se em algo de obsessivo e poderoso.
Raul afastara-se pouco a pouco de todos os que o rodeavam e a sua interação com
os outros reduziu-se a algo distante e raro. O cachimbo ajudava-o, como uma
extensão de si mesmo e ao mesmo tempo como uma arma defensiva, um escudo. Esteve
fora muitos anos, não porque quisesse ver o mundo, e muito menos pertencer-lhe,
mas o ímpeto de navegar era irrefreável. Precisava remar com a sua vida e
zarpar para outros lugares. Viajou durante um tempo indefinido até esgotar toda
a sua energia. Dizia-se que andou pelos Estados Unidos, depois Colômbia, Filipinas,
Sicília, Japão, Indonésia, Maldivas, Açores. Regressou a Boca da Foz numa
madrugada morna de verão e trouxe com ele uma cor cinzenta na pele e uma tosse
diferente de qualquer outra que se tivesse ouvido alguma vez na vila. Ninguém
sabia do que padecia ou mesmo se padecia de algo. O ar de morto-vivo que tinha
fazia duvidar do estado da sua existência física.
Pouco falava sobre a sua viagem mas, a pouco e
pouco, os mais atentos desenharam uma curiosa relação entre os locais onde
esteve, e o acontecimento de inesperadas erupções vulcânicas. Raul nunca foi ao
médico mas o inesperado e espetacular diagnóstico sobre a sua tosse chegou pela
televisão. Numa tarde quente de domingo, entre conversas, piadas e facécias, decorria também um concurso
num dos canais da TV e, no café da vila, a pouco e pouco, um pequeno grupo de
clientes tinha ficado colado ao écran, estupefacto e silencioso, e nem um borborigmo se ouvia. A palavra a
adivinhar era tão grande que ninguém acreditava ser possível a sua existência.
Ao fim de algum tempo, e com dois concorrentes já numa desesperança angustiante,
desvendou-se finalmente o mistério.
A palavra era: Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose.
- Pneumo quê??? – perguntou o Padre Serôdio, com os dedos das mãos entrecruzados
sobre a batina, que já fora preta, e que agora fazia jus ao apelido de quem a
envergava.
- Pneusmultrapiscoriasvulcanocirrose! – respondeu o
Sr. Inácio da mercearia.
- Não é nada disso, é
Pneumultramicroscópiovulcanoidicioso! – corrigiu a esposa.
- “Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose” –
repetiu o apresentador na televisão, e explicou – “É o nome de uma doença rara
causada pela aspiração de microscópicas partículas de cinzas vulcânicas”.
E pronto! Depois daquele momento, e da troca
cúmplice e iluminada de olhares, o assunto ficou resolvido. Contudo, até ao dia
de hoje, ninguém tivera coragem de informar Raul sobre a sua estranha maleita.
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