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Boca da Foz (IV)

Natália desce a rua rapidamente. Saiu à sorrelfa de casa sem avisar Sebastião quando reparou que se esquecera de um dos sacos de compras na mercearia. Quando entra no caminho que vai dar à praça cruza-se com Gabriel, que vem em sentido contrário:
- Olá Gabriel!
Ele responde-lhe uns passos mais à frente:
- Natália! – e a resposta parece mais um apelo. Natália vira-se. Olha-o. O corpo de Gabriel no meio da rua parece absorvido pelo azul-escuro do mar, ao longe. Lenta e dolorosamente, quase desaparece.

Já com o saco esquecido na mão, pára à porta da mercearia. Apetece-lhe andar. A sua cabeça nunca pára mas quando caminha pensa tudo mais claramente. Havia um lado muito físico no ato de pensar. O movimento arredondava cada aresta de cada interrogação e quase tudo se encaixava de forma perfeita.
Virou-se no sentido inverso ao de sua casa e seguiu em direção à praça. Um pouco mais à frente, pára no pequeno miradouro. Olha para a estrada que entra na vila. Espera ver o carro de Simão, que saiu há cerca de dois dias para entregar os seus trabalhos. Devia chegar hoje. Observa a noite a instalar-se e repara que já não ouve os trabalhos no estaleiro. Dali avista grande parte das casas, a igreja e os sinos que só tocam quando há missa. Os olhos de Natália caem no mar. O mar enorme às portas de Boca da Foz. Imagina como seria a onda fatídica de Alberto. Sorri. Aquele pedaço de terra parece por vezes tão minúsculo e tão longe do mundo que é como se vivessem numa ilha e, em certas ocasiões, nem isso, sente-se num pequeno barco perdido, no centro do imenso pélago. Natália sente-se muitas vezes, ela própria, uma ilha. Lembra-se de Sebastião e volta-se para regressar a casa. Olhou mais uma vez para o local onde passa a estrada, um fino risco quase a desaparecer. Nenhum carro.

A noite caíra definitivamente. Ao sair da praça, repara na luz da casa de esquina, ao fundo da rua principal. Foi recentemente alugada a uma mulher, Maria Clara. Já a vira uma vez. Uma mulher de estatura média, de tez morena e uns enormes e redondos olhos verdes. O grupo de pessoas que se juntou na sua casa não passou despercebido. Eram um grupo singular com um leve ar de súcia e, no dia da mudança, depois de defenestrarem todas as impurezas, entraram móveis, cortinados e uma quantidade curiosa de caixas de vários tamanhos. Este facto alimentou uma certa curiosidade à volta desta nova residente. Soube-se, uns dias depois, que Maria Clara via o que estava para vir na vida de quem quer que fosse. Via o futuro nas velas. Uma certa perplexidade, não pela adivinhação, mas pelas insuspeitas possibilidades contidas numa vela, levaram a D. Eduarda da mercearia a “pesquisar” mais alguma informação, telefonando à filha que era professora.
- Licnomancia! – disse, numa manhã, na sua mercearia, com uma exagerada expetativa no impacto que pensava causar. Mas apenas o Sr. Inácio, o seu dedicado marido, que se tornara um obsessivo xeleléu, reagiu, com um entusiasmo igualmente desproporcionado.
- Licnomancia! – repetiu, ligeiramente impaciente e nervosa, mas sem perder o ar de mistério. Fingiu não entender um certo tergiversar no comportamento dos presentes e, ainda que ninguém tenha verbalizado alguma interrogação, explicou que era esse o nome da prática adivinhatória de Maria Clara.
Levada por que ventos, e com que propósito, Maria Clara tinha vindo para este lugar só o tempo o diria.

Natália sentiu uma brisa perfumada a espalhar-se pela rua. Abrandou o passo para haurir deliciada o perfume das folhas secas, cuidadosamente misturadas e vagarosamente fumadas. Vinha da casa de Raul. Estava sentado no degrau da porta como habitual àquela hora. Natália acenou-lhe. Raul fez um gesto com o cachimbo.
Nascera numa família de pescadores, como alguns outros dos habitantes de Boca da Foz mas, no caso de Raul, nascera mesmo no mar, em plena faina. A sua mãe acompanhava o pai em quase todas as suas saídas e, numa dessas ocasiões, ele nascera. O cheiro a maresia entranhou-se na sua pele e no seu sangue e ele tornou-se no homem do mar que verdadeira e literalmente era. Essa relação transformou-se em algo de obsessivo e poderoso. Raul afastara-se pouco a pouco de todos os que o rodeavam e a sua interação com os outros reduziu-se a algo distante e raro. O cachimbo ajudava-o, como uma extensão de si mesmo e ao mesmo tempo como uma arma defensiva, um escudo. Esteve fora muitos anos, não porque quisesse ver o mundo, e muito menos pertencer-lhe, mas o ímpeto de navegar era irrefreável. Precisava remar com a sua vida e zarpar para outros lugares. Viajou durante um tempo indefinido até esgotar toda a sua energia. Dizia-se que andou pelos Estados Unidos, depois Colômbia, Filipinas, Sicília, Japão, Indonésia, Maldivas, Açores. Regressou a Boca da Foz numa madrugada morna de verão e trouxe com ele uma cor cinzenta na pele e uma tosse diferente de qualquer outra que se tivesse ouvido alguma vez na vila. Ninguém sabia do que padecia ou mesmo se padecia de algo. O ar de morto-vivo que tinha fazia duvidar do estado da sua existência física.

Pouco falava sobre a sua viagem mas, a pouco e pouco, os mais atentos desenharam uma curiosa relação entre os locais onde esteve, e o acontecimento de inesperadas erupções vulcânicas. Raul nunca foi ao médico mas o inesperado e espetacular diagnóstico sobre a sua tosse chegou pela televisão. Numa tarde quente de domingo, entre conversas, piadas e facécias, decorria também um concurso num dos canais da TV e, no café da vila, a pouco e pouco, um pequeno grupo de clientes tinha ficado colado ao écran, estupefacto e silencioso, e nem um borborigmo se ouvia. A palavra a adivinhar era tão grande que ninguém acreditava ser possível a sua existência. Ao fim de algum tempo, e com dois concorrentes já numa desesperança angustiante, desvendou-se finalmente o mistério.
A palavra era: Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose.
- Pneumo quê??? – perguntou o Padre Serôdio, com os dedos das mãos entrecruzados sobre a batina, que já fora preta, e que agora fazia jus ao apelido de quem a envergava.
- Pneusmultrapiscoriasvulcanocirrose! – respondeu o Sr. Inácio da mercearia.
- Não é nada disso, é Pneumultramicroscópiovulcanoidicioso! – corrigiu a esposa.
- “Pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose” – repetiu o apresentador na televisão, e explicou – “É o nome de uma doença rara causada pela aspiração de microscópicas partículas de cinzas vulcânicas”.

E pronto! Depois daquele momento, e da troca cúmplice e iluminada de olhares, o assunto ficou resolvido. Contudo, até ao dia de hoje, ninguém tivera coragem de informar Raul sobre a sua estranha maleita.

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