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Boca da Foz (III)

A vila começava a aquietar-se a meio da tarde. Ouvia-se a harmonia suave e sem pressa, das águas do rio a caminho do mar. Quando a noite se aproximava, instalava-se uma espécie de silêncio. Uma quietude e um sossego peculiares. As pessoas continuavam a circular pelas ruas, havia movimento no café e na mercearia, mas falava-se em surdina. Como se, àquela hora do dia, a vida se desenrolasse à luz das velas.
Por essa razão, a presença de Alberto naquela altura, no meio da praça, era um impropério. Ele era um néscio insuportável. Ocupava diariamente todos os recantos da vila, do largo da igreja ao caminho da praia, enchendo os ouvidos dos incautos peões com uma palinódia de palavras sem nexo. Estava sempre contra tudo, e contra todos. Não havia remédio nem solução para nada. Todos os caminhos eram de perdição e o fim do mundo respirava-se mais intensamente a cada segundo que passava. De todas as profecias que a sua voz vociferou, uma manteve-se inalterada. Boca da Foz seria engolida por uma onda negra, gigante e espessa, carregada de algas demoníacas. Uma espécie de maremoto infernal. Ao longo dos anos, apurou o discurso, descrevera com pormenores demasiado específicos e assustadores cada um dos demónios que chegaria enrolado na massa de água e, desta forma, inconscientemente, cada um tinha interiorizado a história dos últimos dias de Boca da Foz, como algo de certo e já confirmado por uma espécie de futuro histórico.
Alberto nunca andava só. Amélia, a sua estranha e quase invisível mulher, mais parecia um escarabocho ao seu lado e, no seu andar de songamonga, acompanhava-o sempre, e para todo o lado.
Cobria-se de roupa o ano inteiro. Sempre de lenço, chapéu, e saia comprida, era por vezes no casaco justo que lhe acomodava as ancas, que se fazia adivinhar alguma elegância. Nas poucas vezes que se descobria por inteiro a sua cara, a revelação era surpreendente. Amélia tinha traços distintos. Inesquecíveis. Uma beleza perturbante, diziam. Os tecidos aligeiravam no verão mas, nos dias mais frios de inverno, a mulher parecia uma enorme mancha amorfa ao lado de Alberto. Como se tivesse construído um casulo e, dentro dele, a sua vida se resguardasse numa vagarosa e solitária respiração. Uma respiração de memórias.

Uma toada sombria chega perto de Amélia. Gabriel pára. Encosta-se ao tronco de uma árvore. Amélia levanta a cabeça. Vira-se. A pouca luz que resta do dia ilumina os seus olhos esquivos cor de mel. Os seus olhos húmidos de uma inesperada doçura. Gabriel olha-a de longe. Consegue vê-la por inteiro no seu corpo gasalhado. Consegue vê-la. Cada dedo das suas mãos brancas e finas, cada palavra adiada e guardada, o fio dos seus cabelos longos, ondulados, ainda cheios de fogo, os seus lábios fechados como duas asas quietas e rosadas e os seus olhos. “Meu Deus…os seus olhos!”.

A praça silenciou. Alberto terminou o seu discurso. Amélia baixa um pouco o lenço sobre os olhos e ajeita a aba do chapéu de forma quase carinhosa. Um ademane secreto e soturno para o homem encostado à árvore. Para o coração dentro do homem encostado à árvore. Amélia segue pelo caminho até casa. Segue Alberto. Gabriel caminha ao lado da praça. Não a atravessa naquele momento. É terreno sagrado para ele. Caminha como um funâmbulo pelo desvio estranho que tem sido a sua vida, e na distopia dos seus pensamentos pressente muitas vezes o desejo de ceder. A inevitabilidade de desistir de respirar. Abjurar do oxigénio como se fosse uma religião. Como se viver fosse acreditar em alguma coisa.

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