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Boca da Foz (I)

O ruído era quase ensurdecedor.
Durante toda a tarde, o estaleiro esteve num enorme reboliço. Depois da tempestade da semana passada, tantos eram os barcos danificados, que as mãos não se perdiam com tanto trabalho. Mas o ruído, não tanto pela intensidade mas pela persistência, estalava, pé ante pé, no cérebro de Natália.
A noite encostava-se cada vez mais na serra e deslizava como uma cobra pela encosta. De um dos lados, ainda se via bem a charneca e o rosa ainda ténue das primeiras urzes pareciam luzinhas a ladear o caminho até à falésia.
Da janela, ouvia-se um assobio quase abafado pelo arruído daquela tarde. Uma melodia alongada e triste arrastava o passo de Gabriel pelo caminho do estaleiro. Todos os dias a entoava, ao final da tarde, no regresso a casa, como um ritual que o preparava para entrar na estranheza das suas noites. Era um homem doce e amical, mas contido, como se algo dentro de si estivesse eternamente ferido e sem cura. Por vezes, andava como se estivesse num labirinto. Transcurava tudo o que o rodeava e desertava para outro lugar. Um lugar íntimo, intacto e limpo, onde guardava a possibilidade preciosa, de uma vida que não aconteceu.

Ela perdia-se sempre que ficava no seu alpendre. Perdia-se na vida, no mundo. Perdia-se nela própria.
Na vila, o tempo não passava como esperado, ou desejado. Apesar de fazer parte da sua natureza nunca parar, ali, em Boca da Foz, o tempo não passava ordenado e certo, como em qualquer outro sítio. O tempo entrava pelo lado sul da aldeia, na forma de uma corrente de ar. Percorria as ruas até ao centro e, no largo da igreja, fazia ressoar os sinos de forma estranha, como um hino ou um tremor. Um triságio quase alarmante. Um sinal indecifrável.
E depois ficava. Entranhava-se nos corpos, colava-se na pele, molhava os olhos. Enrolava-se nos cabelos, largava ideias na cabeça das pessoas, esmiuçava os tormentos e as dores, mas também espalhava euforia, incendiava os desejos, acordava os sonhos. O tempo parava por ali. Ficava. Como se houvesse naquele lugar, uma espécie de intermitência.

O rádio estava ligado e ouviu-se o início de uma canção: “Vens ou ficas?”. Um dia, Simão fizera-lhe exatamente essa pergunta: “Natália! Vens ou ficas?”. Natália não respondeu. A certeza de ir era tão grande que nenhuma palavra seria apropriada naquele momento. Agarraram-se à primeira estrada que encontraram e só pararam em Boca da Foz.
Não se recorda de quando encontrou Simão pela primeira vez. Recorda-se apenas de o reconhecer e de saber que ele lhe pertencia. Recorda-se de sentir que tinha chegado a casa. A casa dela era dentro dele. Para sempre. Lembra-se de sentir calor. Lembra-se de olhar os braços e ver o sangue vermelho e vivo a percorrer caminhos desconhecidos dentro de si. Por segundos, Natália ardeu, e a marca desse evento ficou dentro dela, como uma tatuagem, uma doença crónica. Nunca mais foi livre. Mas também não era liberdade que ela queria. A liberdade fora a sua prisão durante demasiados anos. Um tempo de deletério onde quase se perdeu.

No dia do seu casamento, logo depois de prometerem que a vida seria como quisessem, olhou Simão nos olhos como se o abraçasse por dentro. Depois, Simão beijou-lhe os olhos e algo ficou para sempre selado dentro deles. Para ela, foi o esbulho do passado num só gesto. Aquele momento tocou cada um dos presentes como um batismo. Como uma janela que se abriu. Um vislumbre de sonhos possíveis, que alterou percursos e mudou histórias. 

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