Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir
Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que inda posso ir
Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir
Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu
Como, se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato inda pisa no teu
Como, se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair
Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir.
Chico Buarque
O livro aberto pousado nas suas mãos. Na macieza dos lábios as palavras mastigadas em silêncio e na dobra das pálpebras pequenos fragmentos de texto que não couberam naquelas páginas. A serena curva temporal do rosto acumula todos os pequenos assombros emocionais que cada parágrafo percorrido lhe desperta. O belíssimo rosto do ser amado a ler ilumina-se entretanto por um raio de sol que abre caminho por entre nuvens, braços, ombros e sacos. Olho a sua face iluminada. Iluminada pelo singelo e extraordinário raio de sol que ali escolheu terminar a sua viagem cósmica. Ali, no seu rosto, entre tantos outros na carruagem do comboio numa manhã de fevereiro. Ninguém atenta na singularidade deste instante. A luz que há minutos partiu de uma estrela viaja agora connosco no comboio. Ilumina-te. E na dobra do tempo, como antes na dobra das tuas pálpebras, somos atingidos pela poeira desta centelha. Somos perfeitos. Estamos numa única dimensão. Estamos em todo o lado. [ alma ]
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