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Amigas

Chegámos tarde ao dia aprazado para tratar das nossas mortes. Tinhamos trabalhado tanto a ideia de preparar ao milímetro as nossas últimas vidas e a morte e a morte de cada uma que escolhemos um dia para nos sentar e trocar com juramento de sangue e votos de não sofrer, não cair e nos ajudarmos a morrer de repente.

Agora nada havia a fazer e era difícil estar assim perante a eternidade aprisionada numa capela barroca, sem podermos conversar e estabelecer os protocolos da partida. Agora nada havia a fazer senão dizer as sete últimas palavras e um guia de viagem para não te perderes no rio profundo que tinhas para percorrer. Trouxe os livros antigos só para o caso de ser ainda possível deixar-te debaixo do lençol de linho um guia de orientação para as coisas profundas, as orações em ponto de milho (copiadas de Clarice Lispector) e um copo de prata para as oferendas.
A noite, apesar de tudo, estava luminosa e embora o rio parecesse mais parado do que o costume, as vozes, sobretudo as vozes, afirmavam uma vida inteira para viver. Afinal, para elas, ainda havia tempo e as palavras serviam para afirmar uma linha do horizonte muito distante e curva, lugar de rios em estado de foz e peixes estranhos em rituais de acasalamento.
Durante anos e anos dividimos as vidas, infâncias partilhadas, juramentos solenes, partos difíceis, doenças e melhora, o crescimento dos míudos, os tempos das fugas. Nas nossas conversas havia sempre um lugar para a morte, uma cicatriz do tamanho de um vale, aumentada pela partida súbita dos amigos, dos parentes. No dia em que entre nós e a eternidade não sobrou mais nada marcámos então a data para nos ocuparmos da nossa própria morte. Diante da árvore dos milagres lembrámos as palavras das mãe quando dizia "a filha mais velha não pode casar para tomar conta dos outros" e as palavras da amiga "uma mulher deve casar ao menos uma vez na vida" e demos conta de ter cumprido todas as promessas: casar e mesmo assim cuidar dos outros, envelhecer de filhos e dar conta das tarefas do pão, da horta e dos tecidos.
Agora que a conversa à volta subia de tom e as pessoas mergulhavam fundo no esquecimento só para se mostrarem vivas, eu lembrava a nossa vida partilhada e o hábito de guardar segredos por ordem alfabética, praticado ao fim da tarde com alguma regularidade. Essa era uma forma de dar corda às pequenas palavras de mistério que nos alargavam a vida e fugir à pequena fala de boca a orelha espalhada por todas as velhas do bairro.
Estar ali de pé a sentir nas veias o fluxo das marés e a torrente de um rio sózinho a correr em leito próprio não era senão uma forma maior de me afastar. Cantar-te com palavras cheias de sílabas mortas não fazia parte do jogo nem do nosso pacto mais secreto.
O mundo passou a doer em cada esquina. Os relógios do tempo adiantaram-se e eu não sabia o que fazer dos livros antigos que tinha debaixo do braço para te ler para te ler como guia para os caminhos das profundezas que talvez tivesses que atravessar.
Nenhum destes livros continhas as palavras que eu procurava. Assim fiquei calada dentro daquela pequena eternidade. Pousei no chão sete rosas murchas com as sete palavras da salvação: sino, memória, flor, crianças, riso, dança, calor.
Saí apertando com força a pergunta:
Como foi que faltámos ao dia aprazado para tratar das nossas últimas vidas e da morte e da morte da cada uma?


texto de Ana Paula Tavares

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