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ars poetica

trabalhar o mundo, as relações de vizinhança
entre os seres e as coisas, no intervalo exacto
da sua infelicidade constritiva. encontrar o que te leva
a dar essa ênfase à palavra, ou a tirar-lha,
sempre que o sintas oportuno, calibrando-a

em nome do que leste, de quem amas,
de quem te desespera, de uma experiência única
no emaranhar das sombras e das vozes.
e técnica, técnica até ao sarro do silêncio e do ruído
assim porás a nu o que a própria nudez

por si não tem, a menos que, sofrendo,
lho acrescentes. a poesia revela inesperados
desencontros e neles poderás modular-te,
falar das tuas ilusões, do que te falta até ao osso.
nem outra coisa é o desengano: simular

uma ordem entrevista e sustentá-la
in absentia ou no luto. vem a dar ao mesmo.
o âmago do poema é o seu mecanismo
e o seu mecanismo só tu podes inventá-lo
e pô-lo a funcionar para que alguém

nele se reonheça e também faça
do interior do poema a sua casa,
encontre nela o seu espaço, meça
por ela o seu tempo, guarde
nela contigo o coração doente.


Vasco Graça Moura

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gritas, gritam até que o outro ensurdeça,  até que fique com os pés presos na lama e se esgote. gritas, gritam palavras e frases de uma ordem estéril que nos matará. rasgam os pulmões com cânticos, alucinados,  com uma narrativa estúpida de quem nos crê estúpidos...e seremos? rangem os dentes,  soltam os caninos e farejam a hesitação com o dedo no gatilho, lambem-nos o medo na pele... abrem as gargantas de onde saem línguas como canos apontados ao nosso cérebro,  línguas sibilantes num hálito de enxofre, numa infindável oratória que nos queima a pele, nos rompe a mente. destroem o silêncio. gritam que somos vítimas,  as suas vítimas,  as legítimas,  enquanto desviam o olhar e fecham as órbitas embaciadas para que a realidade não os capture. gritam, gritam e gritam pois enquanto gritam não param,  não pensam, não deixam que ninguém pare, e ninguém pensa. embalam os corações nas bandeiras e nos hinos para conseguirem adormecer,  para que o sono...