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Uns cegos, outros surdos

gritas,

gritam até que o outro ensurdeça, 
até que fique com os pés presos na lama e se esgote.
gritas,
gritam palavras e frases de uma ordem estéril que nos matará.
rasgam os pulmões com cânticos, alucinados, 
com uma narrativa estúpida de quem nos crê estúpidos...e seremos?
rangem os dentes, 
soltam os caninos e farejam a hesitação com o dedo no gatilho,
lambem-nos o medo na pele...
abrem as gargantas de onde saem línguas como canos apontados ao nosso cérebro, 
línguas sibilantes num hálito de enxofre, numa infindável oratória
que nos queima a pele, nos rompe a mente.

destroem o silêncio.

gritam que somos vítimas, 
as suas vítimas, 
as legítimas, 
enquanto desviam o olhar e fecham as órbitas embaciadas para que a realidade não os capture.
gritam, gritam e gritam pois enquanto gritam não param, 
não pensam, não deixam que ninguém pare, e ninguém pensa.
embalam os corações nas bandeiras e nos hinos para conseguirem adormecer, 
para que o sono lhes sussurre que são anjos e que a trincheira onde dormem é a certa.

só eles são o bem e a virtude, 
só eles amam, 
só eles aceitam e abraçam, 
só eles podem e sabem, 
só eles, eles os justos,
só eles condenam, 
só eles assinalam os demónios
e só eles decidem se é a vida ou a morte que nos salva.

dizem que este é o caminho e a verdade, 
e tomam para si a liberdade que nos será dada em colheres de sopa, amiúde, como recompensa.
querem-nos para lavarmos as suas almas,
para não ficarem sós e perdidos na sua macabra utopia.

gritas, 
gritam até que a surdez do outro se arraste e alie à vossa cegueira,
uns cegos, outros surdos, todos traídos.

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